CITAÇÕES IMPORTANTES DO LIVRO
(Rainer Maria Rilke, Cartas à um jovem poeta, Tradução: Paulo Rónai e Cecília Meireles, São Paulo: Editora Globo, 2007)
Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?. Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-ser o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. [...] Relate tudo com íntima e humildade sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Página 26, 27, 28
Quero falar-lhe hoje apenas de duas coisas. Primeiro, da ironia. Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. (Página 32)
[...] Leia o menos possível trabalhos de estética e crítica. Ou são opiniões partidárias petrificadas e tornadas sem sentido em sua rigidez morta, ou hábeis jogos de palavras inspirados hoje numa opinião, amanhã noutra. As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se junto com elas. É sempre a si mesmo e a seu sentimento que deve dar razão contra toda explanação, comentário ou introdução dessa espécie. Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural de sua vida interior há de conduzi-lo devagar, e, com o tempo, outra compreensão. Deixe a seus julgamentos sua própria e silenciosa evolução sem a perturbar; como qualquer progresso, ela deve vir do âmago do seu ser e não pode ser reprimida ou acelerada por coisa alguma. Tudo está em levar a termo e, depois, dar à luz. Deixar amadurecer inteiramente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento, e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade; só isso é viver artisticamente na compreensão e na criação.
Página 36 e 37
[...] Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranqüila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo. (Página 37)
[...] “Viver e escrever em cio”. Com efeito, a experiência artística está tão incrivelmente perto da experiência sexual no sofrimento e no gozo, que os dois fenômenos não são senão formas diversas da mesma saudade e da mesma bem-aventurança. (Página 38)
[...] Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável; se possuir este amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso e, por assim dizer, reconciliador. [...] (Página 42)
O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar, que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. [...] (Página 42)
Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num baloiçar de volúpia executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e forças para a canção de algum poeta vindouro que há se surgir para dizer indizíveis prazeres. (Página 44)
Pudesse ter respeito para com a própria fecundidade, que é uma só, embora pareça ora espiritual ora corporal. A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. [...] (Página 44)
[...] A beleza da virgem, um ser “que” – como diz com tanto acerto – “ainda não cumpriu nada”, é maternidade que se pressente e se prepara, que anseia e deseja. A beleza da mãe é a maternidade que serve; a da anciã, uma grande recordação. No próprio homem, parece-me, há maternidade carnal e espiritual; a sua criação também é uma maneira de dar à luz, pois criar com plenitude íntima é dar à luz. Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo talvez resida nisso: o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta. (Página 45)
[...] Ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sentem próximos estão longe. Isso mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe aparecer longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos. Alegre-se com essa imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que eles não poderão compreender. (Páginas 45 e 46)
Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro – o que importa, apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu amor. [...] (Página 52)
Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir traqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que devemos agarrar-nos ao difícil. [...] Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita. (Página 58)
Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por se terem os homens revelado covardes nesse sentido, foi a vida prejudicada imensamente. [...] Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, diante do qual não nos sentimos bastantes fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão da janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança. [...] (páginas 68, 69)
[...] Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo horror, em última análise, não passe de um desamparo que implora o nosso auxílio. (Página 70)
Por que deseja excluir de sua vida toda e qualquer inquietação, dor e melancolia, quando não se sabe como tais circunstâncias trabalham no seu aperfeiçoamento¿ Para que perseguir-se a si mesmo com a pergunta: de onde pode vir tudo aquilo e para onde vai¿ Não sabia estar em transição¿ Desejava algo melhor do que transformar-se¿ Se algum ato teu for doentio, lembre-se de que a doença é o meio de que o organismo se serve para se libertar de um corpo estranho; é só ajudá-lo a ficar doente, ter toda a sua doença e deixar a esta o seu curso. [...] Deve ter a paciência de um doente e a confiança de uma convalescente, pois talvez seja um e outro. Mais ainda: o senhor é também o médico que se deve vigiar a si mesmo. Em muitas doenças, porém, há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. É o que o senhor deve fazer agora, porquanto é seu próprio médico. (Página 70)
Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem. Senão chegará facilmente a encarar com censuras (morais) o seu passado, que naturalmente é responsável em parte do que lhe ocorre agora.
[...] Desejo que encontre bastante paciência em si para suportar e bastante simplicidade para crer; que confie cada vez mais no que é difícil, entre outras coisas na sua solidão. No restante, deixe a vida acontecer [...] (Página 74)
Quanto aos sentimentos: são puros todos aqueles que o senhor concentra e guarda; impuros os que agarram só um lado de seu ser e o deformam. Tudo o que pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo o que torna algo mais do que foi até agora em suas melhores horas é bom. Toda intensificação é boa, quando está em todo o seu sangue, quando não é turva ebriedade, mas alegria cujo fundo se vê. [...] (Página 74)
Sua dúvida pode tornar-se uma qualidade se o senhor a educar. Deve-se transformar em saber, em crítica. Cada vez que ela lhe quiser estragar uma coisa, pergunte-lhe por que aquilo é feio. Peça-lhe provas, examine-a; talvez a ache indecisa e embaraçada, talvez revoltada. Mas não ceda, exija argumentos. Ponha-se a agir assim, atenta e conseqüentemente, cada vez, e dia virá em que, de destruidora, ela se tornará sua melhor colaboradora, talvez a mais sábia de quantas cooperam na construção de sua vida.
(página 74)
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