sexta-feira, 16 de março de 2012

CAIM E CRISTO como símbolos do MASOQUISMO. Por Gilles Deleuze.



Sacher-Masoch: o frio e o cruel

SINOPSE
“O destino de Masoch é duplamente injusto”, resume Deleuze, um dos mais importantes pensadores contemporâneos. Sacher-Masoch, que inspirou a formulação do neologismo “masoquismo”, teve ao longo dos anos sua obra praticamente esquecida e associada com os escritos do Marquês de Sade. O filósofo realiza uma brilhante leitura comparativa entre as obras do austríaco e de Sade, atento ao valor literário e ao viés psicanalítico. Um livro que ilustra bem a ideia deleuziana de que o artista ou o escritor é um pensador tanto quanto o filósofo ou o cientista.

“Para Deleuze, a literatura é uma atividade clínica, e o grande artista é mais um médico do que um doente.” Roberto Machado, professor de filosofia da UFRJ.





"Os dois grandes personagens masculinos na obra de Masoch são Caim e Cristo. O signo dos dois é o mesmo, o signo pelo qual Caim estava marcado já era o sinal da cruz, que se escrevia “x” ou “+”. Ao colocar grande parte da sua obra sob o signo de Caim, Masoch implica muitas coisas: o crime, sempre presente na natureza e na história; a imensidão dos sofrimentos (“minha punição é grande demais para ser suportada”). Mas Caim é também o agricultor, o preferido da mãe. Eva saudou seu nascimento com gritos de alegria, mas não teve alegria por Abel, o pastor, colocado do lado do pai. O preferido da mãe chegou ao crime para romper a aliança do pai com o outro filho: ele matou a semelhança do pai e tornou Eva a deusa-mãe. (Hermann Hesse escreveu um curioso romance, Demian, onde se misturam os temas nietzschianos e masoquistas: aparece a identificação da deusa-mãe com Eva, gigante que tem na testa a marca de Caim.) Não é apenas pelos tormentos que sofreu que Caim é tão querido por Masoch, mas também pelo crime cometido. Seu crime não apresenta símbolo sadomasoquista algum. Ele pertence inteiramente ao mundo masoquista, pelo projeto que sustenta, a fidelidade ao mundo materno que o inspira, a eleição da mãe oral e a exclusão do pai, o humor e a provocação. Seu “legado” é um “signo”. Que Caim seja punido pelo Pai marca a volta ofensiva deste último, sua volta alucinatória. Fim do primeiro episódio. Segundo episódio: Cristo. A semelhança do pai é novamente abolida (“Por que me abandonastes¿”). E é a Mãe que põe o Filho na cruz. É a virgem que, pessoalmente, põe Cristo na cruz – contribuição masoquista para a fantasia mariana, versão masoquista de “Deus morreu”. E colocando-o na cruz, num signo que o liga ao filho de Eva, ela dá prosseguimento à tarefa da deusa-mãe, da grande Mãe-oral: assegura ao filho uma ressurreição como segundo nascimento partenogenético. Não é tanto o Filho que morre, mas sim Deus Pai, a semelhança do pai no filho. A cruz representa aqui a imagem materna de morte, o espelho onde o eu narcísico de Cristo (= Caim) apercebe-se do eu ideal (Cristo ressuscitado). (...)
A mãe de Deus coloca seu filho na cruz precisamente para que ele se torne seu filho e goze de um nascimento que se deve apenas a ela. (...) Tornar-se um homem significa então renascer da mulher apenas, ser objeto de um segundo nascimento. (...)
O masoquista atua simultaneamente em três processos de denegação: um que magnífica a mãe, emprestando-lhe o falo próprio para fazê-lo renascer; outro que exclui o pai como não tendo função alguma nesse segundo nascimento; e outro ainda que incide propriamente no prazer sexual, interrompendo-o e abolindo a genitalidade para transformá-lo em prazer de renascer. De Caim a Cristo, Masoch exprime o fim último de toda a sua obra: Cristo não como filho de Deus, mas como o novo Homem, isto é, com a semelhança do pai abolida, “o Homem na cruz, sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem disputas, sem trabalho...”


Extraído
(DELEUZE, Gilles. SACHER-MASOCH: o frio e o cruel. Tradução: Jorge Bastos. Revisão Técnica: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 95-99)

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