O TEATRO DE MARIONETAS (Heinrich Von Kleist)
Dois trechos demonstrativos + texto completo abaixo
Intrigou-me, então, que mecanismo o daquelas pequenas figuras, e sem haver milhares de cordéis entre os dedos como era possível cada membro e os seus centros nervosos serem comandados de acordo com o ritmo dos movimentos e da dança. Eu não devia imaginar que o manipulador atuava sobre cada membro em todos os momentos da dança, respondeu.
- Cada movimento– dizia – tem centro de gravidade próprio, e basta dirigi-lo no interior, dentro da figura; os membros, que não passam de pêndulos, não é preciso tocar-lhes pois atuam por si, de forma totalmente mecânica.
Acrescentou que era um movimento muito simples: cada vez que o centro de gravidade se deslocava em linha reta, os membros descreviam curvas; sendo vulgar que o conjunto, devido a uma circunstância totalmente fortuita, começasse a mexer-se ao sabor de um ritmo que lembrava a dança. (KLEIST, Heinrich Von. AS MARIONETAS. Tradução de Luís Bruhein e Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, Páginas 16 e 17)
[...] Verifica-se que a reflexão, no seio do mundo orgânico, é inversamente proporcional à graça: quanto mais fraca aquela é, mais esta irradia e domina. O mesmo se dá com duas curvas que, passando de ambos os lados de um ponto, se cortam no infinito; ou com a imagem de um espelho côncavo que repetidamente se faz real depois de ter atingido o infinito; também assim a graça ressurge depois do conhecimento atravessar, digamos, um infinito; e da mais pura forma ela se mostra, quer no corpo que tenha uma, infinita, querendo eu dizer no fantoche articulado ou em Deus. - Dessa forma – respondi um tanto perplexo – seria necessário voltarmos a provar do fruto do conhecimento para recuperarmos o estado de inocência. – Com certeza absoluta – respondeu – E será esse o derradeiro capítulo da história do mundo.
Extraído de:
KLEIST, Heinrich Von. AS MARIONETAS. Tradução de Luís Bruhein e Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, páginas 28 e 29
A editora Antígona fez chegar em Julho de 2009 às livrarias a obra Sobre o Teatro de Marionetas do escritor alemão Heinrich von Kleist numa tradução de José Miranda Justo. Sobre esta obra, diz a nota de imprensa: Heinrich von Kleist (1777-1811) é um dos nomes maiores da literatura alemã do séc. XIX e o mais importante dramaturgo do Romantismo alemão, considerado o precursor do teatro moderno. Além disso, escreveu poemas, novelas, contos e ensaios, em que revela um génio único.
Este volume reúne alguns textos de reflexão, escritos entre 1799 e 1811, de natureza estética, que denotam uma enigmática abordagem das questões metafísicas discutidas pelos grandes filósofos da época.
Outros títulos deste autor, na Antígona: Michael Kohlhaas, O Rebelde, e A Marquesa de O…/O Terramoto no Chile (esgotado).
Recomendo o texto de apresentação à obra da autoria de Isabel Alves Costa, publicado na OBSCENA #18.
Escrito em 1810, Sobre o Teatro de Marionetas, de Heinrich von Kleist, ganha nova vida numa tradução de José Miranda Justo, que a Antígona publicará em Fevereiro, integrando Do Mundo como da Arte - “Sobre o teatro de marionetas” e outros escritos, uma colectânea de textos do autor alemão. A acompanhar a pré-publicação, Isabel Alves Costa, directora artística do Festival Internacional de Marionetas do Porto, apresenta e contextualiza um ensaio clarividente e precursor de uma reflexão sobre o teatro enquanto modelo de influência.
Sobre o Teatro de Marionetas é um texto curto e enigmático, escrito por Heinrich von Kleist em 1810 cujo tema é o teatro de marionetas. Formalmente, apresenta-se como um diálogo entre o autor e o “primeiro bailarino da Ópera da cidade”. Este diálogo não tem lugar nos bastidores da Ópera, mas sim no espaço público de um jardim ao ar livre parecendo, com isso, que Kleist quer criar um distanciamento em relação ao espaço fechado do Teatro onde se representam as obras do reportório.
O diálogo gira em torno da superioridade das marionetas sobre os bailarinos de “carne e osso”. Poderia pensar-se que se trata apenas de um manifesto escrito para reabilitar esse género dito menor – que havia sido proibido por exercer uma “má influência sobre a população – e voltar a dar-lhe a dignidade do modelo teatral. Esta leitura sendo possível, é claramente redutora. A espessura deste texto permite- -nos ir encontrando sucessivas e cada vez mais profundas, interpretações.
Tendo sido praticamente ignorado até aos princípios do século XX, a sua leitura hoje faz dele um dos textos fundadores que enunciam a modernidade. Este escrito, diz-nos Claude Gaudin[1], “desenha profeticamente os saberes e as disciplinas que contribuirão para nos dar a “figura” do homem moderno”. O que Kleist pressente e anuncia é a grande mutação que conhecerá o teatro no final do século XIX princípios do século XX e, o exemplo do “maquinista” (ou no manipulador de marionetas) de que se serve, é já uma pré-figuração do encenador tal como o conheceremos 100 anos mais tarde.
Texto eminentemente literário que, embora não esteja incluído no conjunto da sua obra dramatúrgica, pode constituir-se como uma “chave” para a sua compreensão, vai buscar, curiosamente, as suas referências à mecânica e à biologia, à história e à psicologia, à matemática e à teologia, o que acentua a sua singularidade.
Sobre o Teatro de Marionetas, diz-nos ainda Claude Gaudin, “não se empenhava apenas numa reflexão sobre a estética teatral, mas também numa reflexão filosófica sobre a natureza da representação”. Mas este texto denso, de leituras múltiplas, abriria igualmente as portas a questões mais vastas uma vez que, por detrás da figura simbólica da marioneta, se perfilaria a ideia do homem e da universalidade da sua humanidade.
Sobre o Teatro de Marionetas não nos ensina nada sobre o teatro tal como se faz ou poderia fazer: não é nem uma confissão do dramaturgo Kleist, nem um ensaio de estética. Mas um texto como este diznos o sonho e o papel principal de todo o teatro: ser essa “viagem à volta do mundo” que, passando necessariamente pela degradação da repetição e pelo afrontamento do corpo, nos faça descobrir uma nova porta para o paraíso, logo escrever “o último capítulo da história do mundo”[2].
De leitura obrigatória e fundamental.
[1] La marionnette et son théâtre – le “théâtre” de Kleist et sa postérité, Ed. Presses Universitaires de Rennes, 2007
[2] Bernard Dort, Théâtre Public nº 43, éditions Théâtre de Gennevilliers, Janeiro/Fevereiro 1982
A OBSCENA #18 fez ainda uma pré-publicação de Sobre o Teatro de Marionetas.
Sobre o Teatro das Marionetas [3] (Texto completo)
Tradução do alemão e notas de José Miranda Justo. Revisão de Carla da Silva Pereira
Quando passei o Inverno de 1801 em M... [4], encontrei um dia ao fim da tarde num jardim público o Senhor C. que havia pouco tempo tinha sido contratado para o lugar de primeiro bailarino da Ópera da cidade, despertando extraordinário sucesso junto do público. Disse-lhe que muito me surpreendera tê-lo visto já por várias vezes num teatro de marionetas que havia sido erguido na praça do Mercado e que divertia a populaça com pequenos dramas burlescos misturados com cantares e danças.
Garantiu-me que a pantomima desses bonecos lhe proporcionava muito prazer e fez notar abertamente que um bailarino que quisesse progredir na sua formação tinha muito a aprender com eles.
Uma vez que esta declaração, pela maneira como a apresentou, me pareceu mais do que uma mera ideia súbita, sentei-me com ele na intenção de melhor compreendê-lo quanto às razões em que poderia apoiar uma afirmação tão estranha.
Perguntou-me se na verdade não havia achado particularmente gráceis alguns movimentos dos bonecos durante a dança, em especial dos mais pequenos.
Não pude negar que assim era. Nem Teniers [5] teria sido capaz de pintar com mais formosura um grupo de quatro camponeses transportados pelo ritmo vivo de um baile de roda.
Pedi-lhe que me informasse acerca do mecanismo dessas figuras e de como seria possível, sem miríades de fios amarrados aos dedos, comandar-lhes cada membro e os respectivos segmentos de acordo com as exigências rítmicas dos movimentos ou da dança.
Respondeu-me que não devia pensar que durante os diferentes momentos da dança cada membro fosse regulado e manipulado separadamente pelo maquinista.
Cada movimento, disse ele, tinha um centro de gravidade; bastava portanto comandar esse centro no interior da figura; os membros, que mais não eram do que pêndulos, obedeciam por si, de maneira mecânica, sem qualquer outra intervenção.
Acrescentou que este movimento era muito simples; que de cada vez que o centro de gravidade fosse movimentado segundo uma linha recta os membros descreveriam já linhas curvas; e que muitas vezes acontecia que, sacudido de maneira meramente casual, o conjunto da figura entrava numa espécie de movimento rítmico idêntico à dança.
Esta observação pareceu-me começar a lançar alguma luz sobre o prazer que ele confessara encontrar no teatro das marionetas. Mas encontrava-me ainda muito longe de pressentir as consequências que ele daí viria a tirar seguidamente.
Perguntei-lhe se achava que o maquinista que comandava estes bonecos devia ser bailarino ou pelo menos ter um conceito do belo na dança.
Retorquiu-me que se uma tarefa é simples na sua vertente mecânica, daí não decorre necessariamente que possa ser levada a cabo sem sentimento.
A linha que o centro de gravidade havia de percorrer era de facto muito simples e, ao que julgava saber, na maior parte dos casos recta. Em casos em que fosse curva, a lei da curvatura parecia ser apenas do primeiro grau ou quando muito do segundo; e, neste último caso, também somente elíptica, forma de movimento esta que é completamente natural nas extremidades do corpo humano (por causa das articulações) e cujo traçado não exige do maquinista grande técnica.
Por outro lado, porém, essa linha era algo de muito misterioso. Pois mais não seria do que o caminho da alma do bailarino; e ele duvidava de que tal linha pudesse ser encontrada senão de uma maneira: deslocando-se o maquinista para o centro de gravidade da marioneta, ou seja, dançando.
Retorqui que a tarefa do maquinista sempre me fora apresentada como coisa bastante destituída de espírito: algo como dar à manivela de um realejo.
De modo nenhum, respondeu-me ele. Pelo contrário, os movimentos dos dedos do maquinista mantêm com o movimento do boneco que lhes está preso uma relação assaz elaborada, algo como a relação de um número com o seu logaritmo, ou da assimptota com a hipérbole [6].
Entretanto acreditava que também esta última fracção de espírito de que acabara de falar podia ser retirada às marionetas, que a respectiva dança podia ser totalmente transferida para o domínio das forças mecânicas e ser produzida por intermédio de uma manivela, como eu havia imaginado.
Manifestei a minha admiração por verificar o grau de atenção que ele dedicava a esta modalidade de uma das belas artes, uma modalidade afinal inventada para a multidão. Não se limitava a achá-la capaz de alcançar um desenvolvimento superior: parecia que inclusivamente se ocupava dele.
Sorriu e disse que ousava afirmar que, se um mecânico quisesse construir-lhe uma marioneta de acordo com as estipulações que tencionasse impor-lhe, conseguiria executar com ela uma dança que nem ele, nem qualquer outro hábil dançarino do seu tempo, incluindo Vestris [7], estariam em condições de alcançar.
Vendo-me baixar os olhos sem nada dizer, perguntou-me: o Senhor já ouviu falar daquelas pernas mecânicas que certos artífices ingleses produzem para os infelizes que perderam os membros?
Respondi que não: nunca vira tal coisa.
Lamento, redarguiu; porque se lhe disser que, com elas, esses infelizes são capazes de dançar, quase temo que não me acredite. - Que digo: dançar? O âmbito dos seus movimentos é de facto limitado; porém, os que estão à disposição deles efectuam-se com uma calma, uma leveza e uma graça que provocam espanto em qualquer alma pensante.
Disse-lhe, gracejando, que assim sendo tinha já encontrado o seu homem. Pois o artífice que estivesse em condições de construir um membro tão singular, conseguiria sem dúvida fabricar-lhe uma marioneta inteira de acordo com as suas exigências.
Ficando ele por seu turno a olhar para o chão, um pouco consternado, perguntei-lhe: como se definem então essas exigências que o Senhor tenciona pôr à habilidade do artífice?
Nada, respondeu-me ele, que não se achasse já aqui; proporção, mobilidade, leveza – mas tudo isto em grau superior; e sobretudo uma distribuição mais natural dos centros de gravidade.
E a vantagem que esse boneco teria sobre os bailarinos com vida própria?
A vantagem? Antes de mais, meu excelente amigo, uma vantagem negativa, ou seja, o boneco nunca se mostraria afectado. – Porque a afectação surge, como o Senhor sabe, quando a alma (vis motrix [8]) se encontra num qualquer ponto que não coincide com o centro de gravidade do movimento. Ora, uma vez que o maquinista, com o arame ou com o fio, já não tem sob o seu poder qualquer outro ponto que não este: as restantes partes estão como devem estar, mortas, são puros pêndulos, seguindo a mera lei da gravidade; uma excelente qualidade que baldadamente procuraremos na maior parte dos nossos bailarinos.
Veja somente o que se passa com a P..., prosseguiu ele, quando faz o papel de Dafne e, perseguida por Apolo, olha em volta à procura dele; tem a alma nas cruzes; curva-se como se fosse partir-se, qual náiade da escola de Bernini [9]. Veja o jovem F... quando, no papel de Páris, se encontra entre as três deusas e apresenta a maçã a Vénus: tem a alma inteiramente no cotovelo (uma coisa assustadora).
Tais erros, acrescentou ele interrompendo-se, são inevitáveis desde que comemos da Árvore do Conhecimento. Porém o portão do Paraíso está fechado e o querubim lá ficou; teremos que dar a volta ao mundo e ver se há porventura um entrada aberta nas traseiras. Ri-me. – Não há dúvida, pensei eu, de que o espírito não pode enganar- se quando não existe espírito algum. Notei contudo que ele queria ainda dizer mais e pedi-lhe que continuasse.
Para além do mais, disse ele, estes bonecos têm a vantagem de serem anti-graves. Nada sabem da inércia da matéria, essa propriedade que mais do que qualquer outra contende com a dança: porque a força que os ergue no ar é maior do que a que os prende à terra. O que não daria a nossa boa G... para ser sessenta libras mais leve ou para que um contrapeso equivalente viesse em seu auxílio nos entrechats e nas piruetas? Os bonecos, tal como os elfos, só precisam do chão para o tocarem ao de leve e revitalizarem o impulso dos membros por via desse refreamento instantâneo; nós precisamos dele para nos apoiarmos e recobrarmos do esforço da dança: um momento que manifestamente não é dança e com o qual nada se pode fazer senão eclipsá-lo o mais possível.
Disse-lhe que, por muito habilmente que defendesse a causa do seu paradoxo, nunca me faria acreditar que num boneco articulado pudesse conter-se mais graciosidade do que no edifício do corpo humano. Replicou-me que para o homem, nesse particular, seria simplesmente impossível alcançar ao menos o nível do boneco. Neste âmbito, só um deus poderia medir-se com a matéria; e este era o ponto em que as duas extremidades do mundo, na sua circularidade, se tocavam. O meu espanto era cada vez maior e não sabia que dizer a propósito de tão estranhas afirmações.
Ao que parecia, replicou ele, tirando uma pitada de tabaco, eu não teria lido com atenção o terceiro capítulo do Primeiro Livro de Moisés [10]; e com quem não conhece esse primeiro período da formação humana não seria possível falar apropriadamente sobre os seguintes, e menos ainda sobre o último.
Disse-lhe que sabia bem as desordens que a consciência suscita na graça natural do homem. Um jovem conhecido meu perdera, por assim dizer à minha frente, por intermédio de uma simples observação, a sua inocência, e nunca mais voltara a encontrar o paraíso dela, apesar de todos os esforços imagináveis. – Ora que conclusões, acrescentei eu, poderá o Senhor tirar daí?
Perguntou-me a que incidente me referia.
Há coisa de uns três anos, contei eu, fora aos banhos na companhia de um jovem sobre cujo carácter pairava um extraordinário encanto. Estaria talvez no seu décimo sexto ano de vida e só de muito longe se divisavam nele os primeiros vestígios de vaidade acordada pelo favor das mulheres. Sucedia que pouco tempo antes havíamos visto em Paris aquele jovem que tira um espinho do pé [11]; as reproduções em bronze dessa estátua são conhecidas e encontram-se na maior parte das colecções alemãs. No instante em que punha o pé em cima do escabelo para o secar, lançou um olhar para um grande espelho que ali estava e recordou-se da figura; sorriu e contou-me a descoberta que acabara de fazer. De facto também eu a fizera precisamente no mesmo instante; porém, fosse para pôr à prova a segurança da graciosidade que nele havia, fosse para corrigir-lhe um pouco a vaidade: ri-me e respondi – decerto andava a ver espíritos! Corou e ergueu o pé pela segunda vez para que eu visse; a tentativa, contudo, como era fácil de prever, saiu frustrada. Embaraçado, ergueu o pé pela terceira e pela quarta vez, ergueu-o à vontade dez vezes: em vão! era incapaz de reproduzir o mesmo movimento – que digo? os movimentos que fazia tinham uma componente tão cómica que me era difícil conter o riso: –
A partir desse dia, por assim dizer, a partir desse instante, deu-se naquele jovem uma transformação inacreditável. Começou a passar dias inteiros frente ao espelho; e os encantos que antes tinha abandonaram- no um a um. Parecia que um poder invisível e inexplicável viera envolver o livre jogo dos seus gestos, como se fora uma rede metálica, e passado um ano já não se descortinava nele qualquer vestígio da graciosidade que em tempos deliciara os olhos de quem se movimentava à sua volta. Ainda hoje continua vivo alguém que foi testemunha desse incidente estranho e infeliz, e que pode confirmálo, palavra por palavra, como o contei. –
Nesta circunstância, o Senhor C... disse cordialmente, tenho que lhe contar uma outra história cujo lugar neste contexto facilmente compreenderá.
Durante a minha viagem à Rússia, estava eu numa propriedade do Senhor de G..., um fidalgo da Livónia, cujos filhos por aquela altura treinavam esgrima muito intensamente. Sobretudo o mais velho, que acabara de regressar da universidade, dava-se ares de virtuoso; numa manhã em que passei pelos seus aposentos pôs-me um florete na mão. Encetámos um combate; verificou-se porém que eu lhe era superior; a paixão ajudava a confundi-lo; quase todos os golpes que eu lhe dirigia tocavam-lhe e por fim o florete saltou-lhe da mão e foi parar a um canto. Enquanto ia apanhar o florete, disse-me, meio a brincar, meio melindrado, que havia encontrado o seu mestre: porém, neste mundo não há quem não encontre o seu, e ele queria levar-me até junto do meu. Os irmãos começaram a rir alto e gritavam: Vamos! vamos! desçamos ao estábulo! e de imediato me pegaram na mão e levaram-me até junto de um urso que o pai, o Senhor de G..., andava a criar no pátio.
Ao apresentar-me boquiaberto perante ele, o urso estava em pé sobre as patas traseiras, encostado a um poste ao qual estava preso; tinha a pata direita erguida, pronta para desferir um golpe, e olhava-me nos olhos: era a sua posição de esgrimista. Vendo-me face a um tal adversário, parecia-me estar a sonhar; avance! avance! dizia-me o Senhor de G..., e veja se consegue aplicar-lhe uma estocada! Encontrando-me já um pouco recuperado do meu espanto, ataquei o animal com o florete; o urso fez um movimento muito breve com a pata e parou o golpe. Tentei enganá-lo com fintas; o urso não se movia. Com uma agilidade instantânea, voltei a atacá-lo e, se se tratasse de um homem, ter-lhe-ia atingido infalivelmente o peito: o urso fez um movimento muito breve com a pata e parou o golpe. Encontrava-me agora quase na situação do jovem Senhor de G... O ar sério do urso ajudava a que eu fosse perdendo a minha postura, os golpes e as fintas iam alternando, comecei a suar: tudo era em vão! Não era só questão de o urso parar todos o meus golpes, como se fosse o melhor esgrimista do mundo; é que também não se deixava enganar por nenhuma simulação (coisa que nenhum esgrimista deste mundo seria capaz de imitar): olhos postos nos meus, como se fosse capaz de ler neles, ali estava, de pata levantada, pronta a golpear, e sempre que os meus golpes eram simulados nem sequer se mexia.
Acredita nesta história?
Perfeitamente! Disse eu, com um alegre aplauso na voz; é tão provável que acreditaria mesmo que fosse um estranho a contá-la: quanto mais vinda de si!
Portanto, meu excelente amigo, disse o Senhor C..., está agora na posse de tudo o que é necessário para me compreender. Vemos que, no mundo orgânico, à medida que a reflexão se torna mais obscura e mais fraca, a graciosidade se apresenta cada vez mais radiosa e soberana. – Porém, tal como a intersecção de duas linhas por um lado de um ponto, depois de percorrido o trajecto pelo infinito, se volta a verificar subitamente pelo outro lado do mesmo ponto, ou como a imagem no espelho côncavo, depois de se afastar até ao infinito, volta subitamente a surgir perante nós: assim também a graciosidade, depois de, por assim dizer, o conhecimento ter atravessado o infinito, volta a apresentar-se; e de tal maneira que surge em simultâneo e de modo mais puro naquela estrutura de um corpo humano que ou não possui consciência alguma, ou possui uma consciência infinita, i.e. ou no boneco articulado, ou num deus. Sendo assim, disse eu, um pouco abstraído, teríamos que voltar a comer da Árvore do Conhecimento para regressarmos ao estado da inocência.
Sem dúvida, respondeu ele; esse é o último capítulo da história do mundo.
[3] BA, publicado em quatro partes entre 12 e 15 de Dezembro de 1810. Em 17 de Novembro do mesmo ano, tinha sido decretada, com assinatura do imperador Frederico Guilherme III, uma proibição dos espectáculos de teatro de marionetas em Berlim, por exercerem “má influência” sobre a população.
[4] Possivelmente Mainz, onde Kleist havia estado em 1803.
[5] David Teniers, o Novo (1610-1690), pintor flamengo, filho de David Teniers, o Velho; autor de uma imensa produção, atingiu na sua época renome quase idêntico ao de Rubens e Van Dijck. Os seus temas são muito variados, mas é facto que pintou várias cenas de camponeses em festividades e danças.
[6] Exemplos não rigorosos.
[7] Auguste Vestris – nome artístico de Marie-Jean-Augustin Vestris – (1760-1842), bailarino francês.
[8] Em latim no original: “força motriz”.
[9] Giovanni Lorenzo Bernini, (1598-1680), escultor e arquitecto, um dos grandes expoente do barroco italiano. Entre 1622 e 1625 trabalhou numa representação de Apolo e Dafne. O juízo de Kleist parece dirigir-se, não tanto contra Bernini, mas sobretudo contra a repetição maneirista do seu tipo de representação nos epígonos.
[10] O terceiro capítulo do Génesis trata do pecado original e da expulsão do paraíso.
[11] O “Spinario”, estátua do séc. I a.C., possivelmente de Myron. Em Paris, no Louvre, encontra-se uma cópia em mármore.
[8] Em latim no original: “força motriz”.
[9] Giovanni Lorenzo Bernini, (1598-1680), escultor e arquitecto, um dos grandes expoente do barroco italiano. Entre 1622 e 1625 trabalhou numa representação de Apolo e Dafne. O juízo de Kleist parece dirigir-se, não tanto contra Bernini, mas sobretudo contra a repetição maneirista do seu tipo de representação nos epígonos.
[10] O terceiro capítulo do Génesis trata do pecado original e da expulsão do paraíso.
[11] O “Spinario”, estátua do séc. I a.C., possivelmente de Myron. Em Paris, no Louvre, encontra-se uma cópia em mármore.
http://www.acto.com.pt/acto/pdf/asmarionetas.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário