“Sou mestre na
arte de falar em silêncio, passei minha vida toda conversando em silêncio e em
silêncio acabei vivendo tragédias inteiras comigo mesmo. Oh, pois eu também era
infeliz! Fui desprezado por todos, desprezado e esquecido, e ninguém,
absolutamente ninguém sabe disso! E depois, de repente, vem essa garota de
dezesseis anos, pega de gente infame detalhes sobre a minha vida e pensa que
sabe tudo, enquanto o que é secreto
continua encerrado no peito deste homem!”.
Fiodor. M. Dostoievski.
Uma criatura dócil. Tradução de Fátima Bianchi. Ilustrações de Lasan Segall. Cosac & Naify, 2009.
Em Dostoiévski, erro humano se entrelaça à ausência de Deus
Em Dostoiévski, erro humano se entrelaça à ausência de Deus
Por Marcelo Coelho
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Duas Narrativas Fantásticas - A Dócil e Sonho de um Homem Ridículo (128
págs.)
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: 34
Uma Criatura Dócil (93 págs.)
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Ilustrações: Lasar Segall
Editora: Cosac e Naify
É É preciso certa coragem para se aproximar do universo de Fiódor Dostoiévski
(1821-1881). Há a famosa profusão dos nomes russos e de seus diminutivos; a
trama cheia de nós que não desatam; uma impressão constante de congestionamento
espacial, de asfixia, de superpopulação; sem contar o próprio tamanho dos
romances mais famosos -"Crime e Castigo", "Os Irmãos
Karamázov"...
Uma novela curta como "A Dócil" não tem por que intimidar tanto o
leitor. Exceto por uma razão, bem mais profunda do que as citadas acima. O
principal motivo para o medo que Dostoiévski possa inspirar talvez esteja na
seriedade, na gravidade com que encara a capacidade humana para o erro, para o
pecado, para o mal. Quando lemos um romance como "Madame Bovary", de
Flaubert, ou "Dom Casmurro", de Machado de Assis, certamente
acompanhamos com bastante consternação os deslizes e as misérias de seus
protagonistas. Mas, de alguma forma, Bentinho ou Emma Bovary estão um pouco
distantes de nós; o que vemos são casos exemplares, quase que diagnósticos
morais, delimitados -magistralmente, é claro- em si mesmos.
E Essa distância chega a conferir um caráter algo cômico a esses romances, se
comparados aos de Dostoiévski -em que as personagens se debatem com tentações e
misérias morais que reconhecemos de imediato como sendo nossas. O que assusta é
que não as julgávamos, talvez, tão graves; mas Dostoiévski apresenta todo erro
humano como sinal de danação, ou melhor, de uma radical ausência de Deus.
Um breve diálogo, um curto raciocínio, um pouco de calculismo nas relações já
nos precipitam aos caminhos da perdição mais irrespirável. Em "A
Dócil" haveria material para um longo romance: o narrador, de origem
nobre, perde sua patente militar num episódio em que foi acusado de covardia.
Torna-se dono de uma casa de penhores. Uma jovem de 16 anos -a
"dócil" do título- está na miséria. O narrador protege-a, humilha-a,
toma-a em casamento. E é só o começo de uma história de crueldade moral e de
dependência psíquica sem limites.
O narrador conta tudo aos borbotões, algumas horas depois do suicídio da
mulher. O que aconteceu? Por que ela se matou? Em poucas páginas, estamos
confrontados com uma situação psicológica de extrema complexidade; impossível
alcançar todos os motivos da personagem. Seu ato, como no caso de Cristo, é ao
mesmo tempo sacrifício e acusação, promessa regeneradora e expiação dos pecados
de outrem.
O texto ganha corpo, e a voz do narrador adquire uma presença quase física, à
medida que este se corrige, se recrimina, se retorce em busca de uma explicação
para o que ocorreu. Ele passa de algoz a vítima com tamanha rapidez que a chave
do mistério parece ter-se perdido no meio do caminho; de qualquer modo,
desconfiamos dele. Ao mesmo tempo, acompanhamos seus pensamentos no momento
mesmo em que aparecem; essa técnica, a "hipótese de um estenógrafo que
anotaria tudo", diz Dostoiévski na introdução da novela, "é o que
chamo de fantástico nessa narrativa".
A tradução de Fátima Bianchi, para a Cosac e Naify, é mais
"literária". A de Vadim Nikitin, para a 34, pareceu-me mais clara e
coloquial; no próprio excesso de notas de rodapé, é como se reproduzisse a
ansiedade do narrador. Comparem-se as traduções de um trecho bem do início do
livro, onde já podemos entrever, na jactância do narrador ao conquistar a
"dócil", o mal que se desencadeará.
" Eu, quer dizer, por mim, gosto das orgulhosinhas. As orgulhosas são
particularmente belas quando... bem, quando já não se duvida do poder que se
tem sobre elas, hein? Ah, que homem baixo, canhestro!" (Vadim Nikitin). Na
tradução de Fátima Bianchi: "Quanto a mim, digo, gosto das orgulhosinhas.
As orgulhosas são particularmente boas quando... bem, quando já não se duvida
do próprio poder sobre elas, não é? Oh, que sujeito inconveniente,
infame!".
A edição da Cosac tem ilustrações de Lasar Segall, e comentário primoroso de
Augusto Massi. A da 34 traz outra novela curta de Dostoiévski, "O Sonho de
um Homem Ridículo", um tanto abstrata e edificante, mas cujo primeiro
capítulo, opondo as forças da miséria e do suicídio, já nos lança ao mundo
terrível do autor. Vencido o medo, sair dele não é fácil.
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: 34
Uma Criatura Dócil (93 págs.)
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Ilustrações: Lasar Segall
Editora: Cosac e Naify
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