Jorge Luis Borges. Livro Discussão. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008, páginas 97 a 102.
A DURAÇÃO DO INFERNO
Especulação que vem se tomando cansativa com o passar dos
anos, essa do Inferno. Descuidam-se dela os próprios pregadores, talvez
desamparados da pobre,
ainda que serviçal, alusão humana de que as fogueiras eclesiásticas do
Santo Ofício eram neste mundo um tormento temporal; um tormento
temporal, sem dúvida, mas não indigno, dentro das limitações terrenas, de ser
uma metáfora do imortal e da dor perfeita sem destruição que
conhecerão para sempre os herdeiros da ira divina. Seja ou não satisfatória esta
hipótese, é indiscutível que já se toma cansativa a propaganda desse
estabelecimento (e que ninguém se assuste com isto, pois a expressão propaganda
não é de genealogia comercial e sim católica; é uma reunião dos cardeais). No
século II, o cartaginês Tertuliano podia imaginar o Inferno e prever sua
operação com este discurso: "Se lhes agradam as representações, esperem a
maior de todas, o Juízo Final. Que admiração sentirei, que gargalhadas, que
comemorações, que alegria quando veja tantos reis soberbos e
deuses enganadores sofrendo nas mais ínfimas prisões das trevas; tantos
magistrados que perseguiram em nome do Senhor, derretendo-se em fogueiras mais
ferozes do que aquelas que foram açuladas contya os cristãos; tantos graves filósofos consumindo-se em rubras fogueiras com
seus ouvintes iludidos; tantos poetas consagrados tremendo ante um tribunal que
não é o de Mídas, mas sim de Cristo; tantos atores
trágicos, agora mais eloquentes na manifestação de um tormento tão
genuíno..." (De spetaculis, 30; citação e versão de Gibbon). O próprio Dante, na sua grande
tarefa de prever de modo episódico algumas decisões da Justiça Divina
relacionadas com o norte da Itália, não tem igual entusiasmo. Depois, os
infernos literários de Quevedo — mera oportunidade espirituosa de anacronismos — e de
Torres Villaroel — simples oportunidade de metáforas — somente evidenciaram o crescente
desgaste do dogma. A decadência do Inferno está presente neles como em
Baudelaire, este já tão incrédulo dos imperecíveis tormentos, que simula
adorá-los. (Uma etimologia significativa origina o inócuo verbo francês gêner
da poderosa palavra gehenna, das Escrituras.)
Passo a examinar o Inferno. O descuidado verbete pertinente
do Dicionário enciclopédico hispano-americano, merece ser lido, não por suas
indigentes informações ou por sua apavorada teologia de sacristão, mas sim pela
perplexidade que deixa entrever. Começa por observar que a noção de inferno não
é privativa da Igreja católica, precaução cujo sentido intrínseco é o seguinte:
Não vão agora os maçons dizer que essas brutalidades foram introduzidas pela
Igreja. E em seguida se dá conta de que o Inferno é dogma, e acrescenta um
tanto apressadamente que é Glória imperecível do cristianismo atrair a si
quantas verdades se achavam espalhadas entre as falsas religiões. Seja o
Inferno um dado da religião natural ou apenas da religião revelada, o certo é que para mim
nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder. Não me
refiro à mitologia simplista de cortiço — esterco,
espetos, fogo e tenazes — que tem vegetado aos seus pés, e que todos
Os escritores têm repetido, para a desonra de sua imaginação e da sua decência.1 Falo da estrita noção — lugar de
castigo eterno para os maus — que constitui o dogma, sem outra obrigação
do que a de situá-lo in loco reali, em um lugar preciso, e a beatorum sede
distincto, lugar bem diferente daquele onde habitam os eleitos. Imaginar o
contrário seria sinistro. No quinquagésimo capítulo de sua História, Gibbon
quer reduzir o esplendor do Inferno e escreve que os dois vulgaríssimos
ingredientes que são o fogo e a escuridão bastam para criar uma sensação de dor, a qual pode ser agravada
infinitamente pela ideia de uma duração eterna. Esta advertência, difícil de
satisfazer, prova talvez que a preparação do inferno é fácil, porém não suaviza
o admirável espanto de sua invenção. O atributo de eternidade é o horroroso. O de continuidade — os
fatos de que a perseguição divina carece de intervalos e de que no Inferno não
existe o sono — é ainda pior, porém é de impossível
imaginação. A eternidade da pena é o que se contesta.
Há dois argumentos belos e importantes para invalidar essa
eternidade. O mais antigo é o da imortalidade condicional ou aniquilação. A imortalidade, argúi este
compreensivo raciocínio, não é atributo da natureza humana decaída; é um dom de Deus em Cristo. Não pode, por conseguinte,
ser mobilizada contra o mesmoindivíduo a quem é outorgada. Não é uma
maldição, e sim uma dádiva. Quem a merecer, merece-a com o céu; quem prova ser
indigno de recebê-la, morre para morrer — como dizia Bunyan — morre sem resto.
O Inferno, segundo essa piedosa teoria, é o nome humano blásfemo do esquecimento de Deus. Um
de seus propagadores foi Whately, autor de um opúsculo de famosa lembrança intitulado
Dúvidas históricas sobre Napoleão Bonaparte.
Especulação das mais curiosas é aquela apresentada pelo
teólogo evangélico Rothe, em 1869. Sua argumentação — enobrecida também pela
secretamisericórdia de negar o castigo infinito aos
condenados — observa que eternizar o castigo é eternizar o Mal. Deus, afirma ele, não pode
querer essa eternidadepara o Seu
universo. Insiste ser um escândalo supor-se que o homem pecador e o diabo possam burlar para sempre as benévolas
intenções de Deus. (Ateologia sabe que a criação do mundo é obra de amor. O termo predestinação
significa para ela predestinação à glória; a reprovação é
simplesmente o oposto, uma não escolha traduzível em pena infernal, mas que não
constitui um ato especial da bondade divina.) Advoga,
enfim, uma vida decrescente e minguante para os réprobos,
que antevê saqueando pelas margens da Criação, pelos vazios do espaço infinito,
mantendo-se com sobras de vida. E conclui assim: Como osdemônios estão afastados de Deus e são incondicionalmente seus
inimigos, sua atividade se exerce contra o reino de Deus, e se organiza em um reino diabólico que deve, naturalmente,
eleger um chefe. A cabeça desse governo demoníaco — o Diabo — deve ser
imaginada como cambiante. Os indivíduos que assumem o trono desse reino sucumbem à condição fantasmagórica do
seu ser, porém se renovam entre seus diabólicos descendentes (Dogmatik, I,
248).
Chego agora à parte mais inverossímil da minha tarefa: os
argumentos elaborados pela humanidade a favor da eternidade do Inferno. Passo a resumi-los, em
ordem crescente de significação.
O primeiro é de índole disciplinária. Postula que o temor ao castigo radica precisamente na sua eternidade, e que duvidar
dela é invalidar a eficácia do dogma e fazer o jogo do Diabo. É argumento
de natureza policial, e não acredito que mereça
ser discutido. O segundo se escreve assim: A pena deve ser infinita porque a
culpa também o é por atentar contra a Majestade de Deus, que é um Ser infinito. Observou-se que esta
demonstração prova tanto, que se pode depreender que não prova nada; prova que
não há culpa venial e que todas as culpas são imperdoáveis. E eu acrescentaria que é um caso perfeito
de frivolidade escolástica, e que seu
equívoco reside na pluralidade de significados da expressão infinito que,
aplicada ao Senhor, quer dizer incondicionado, assim como da pena que quer dizer
incessante, e da culpa, que não é nada que eu consiga entender. Além do mais, arguir
que uma falta é infinita por ser atentatória a Deus — que é um Serinfinito — é como
arguir que a mesma falta é santa, porque Deus também o é, ou então como pensar que
as ofensas feitas a um tigre devam ser raiadas.
Levanta-se agora sobre mim o terceiro dos argumentos, o
único. Poderia, talvez, ser enunciado assim: Há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do
livre arbítrio assim o necessita; ou temos a faculdade de construir para sempre
ou a individualidade é ilusória. A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito
mais: é inteiramente dramática. Impõe-nos um jogo terrível; concede-nos o
direito atroz de perder-nos, de insistir no mal, de rechaçar as
operações da graça, de ser alimento de um fogo que não se extingue, de fazer Deus fracassar em nosso destino, do corpo sem claridade no eterno e do
detestabili cum cacodaemonibus consortium. Teu destino é coisa veraz, nos dizem; condenação
eterna e salvação eterna estão no teu minuto; essa
responsabilidade é tua honra. É um sentimento parecido com o de Bunyam: Deus não brincou ao converter-me; o demônio não brincou ao tentar-me; nem eu brinquei ao mergulhar em um abismo sem
fundo, quando as aflições do Inferno se apoderaram de mim e tampouco devo
brincar agora ao contar. (Grace abouding to the chief of sinners, the preface.)
Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem
infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até
mesmo a perpetuidade de um Inferno, porém acredito também que é uma
irreligiosidade crer nele.
Pós-data. Nesta página de simples informação posso, da mesma forma, comunicar um sonho. Sonhei que saía de outro sonho — prenhe de cataclismos e de tumultos — e que despertava em uma peça irreconhecível. Clareava; uma escassa luminosidade geral definia os pés da cama de ferro, a cadeira exata, a porta e a janela fechadas, a mesa vazia. Pensei com medo onde estou? e compreendi que não sabia. Pensei quem sou? e não pude reconhecer-me. O medo cresceu em mim. Pensei: Esta vigília desconsolada já é o Inferno; esta vigília sem destino será a minha eternidade. Despertei então, de verdade. Tremendo.
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