sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A DURAÇÃO DO INFERNO. (Por Jorge Luis Borges- Literatura argentina)


Jorge Luis Borges. Livro Discussão. São Paulo: Companhia Das Letras,  2008, páginas 97 a 102.


A DURAÇÃO DO INFERNO

Especulação que vem se tomando cansativa com o passar dos anos, essa do Inferno. Descuidam-se dela os próprios pregadores, talvez desamparados da pobre, ainda que serviçal, alusão humana de que as fogueiras eclesiásticas do Santo Ofício eram neste mundo um tormento temporal; um tormento temporal, sem dúvida, mas não indigno, dentro das limitações terrenas, de ser uma metáfora do imortal e da dor perfeita sem destruição que conhecerão para sempre os herdeiros da ira divina. Seja ou não satisfatória esta hipótese, é indiscutível que já se toma cansativa a propaganda desse estabelecimento (e que ninguém se assuste com isto, pois a expressão propaganda não é de genealogia comercial e sim católica; é uma reunião dos cardeais). No século II, o cartaginês Tertuliano podia imaginar o Inferno e prever sua operação com este discurso: "Se lhes agradam as representações, esperem a maior de todas, o Juízo Final. Que admiração sentirei, que gargalhadas, que comemorações, que alegria quando veja tantos reis soberbos e deuses enganadores sofrendo nas mais ínfimas prisões das trevas; tantos magistrados que perseguiram em nome do Senhor, derretendo-se em fogueiras mais ferozes do que aquelas que foram açuladas contya os cristãos; tantos graves filósofos consumindo-se em rubras fogueiras com seus ouvintes iludidos; tantos poetas consagrados tremendo ante um tribunal que não é o de Mídas, mas sim de Cristo; tantos atores trágicos, agora mais eloquentes na manifestação de um tormento tão genuíno..." (De spetaculis, 30; citação e versão de Gibbon). O próprio Dante, na sua grande tarefa de prever de modo episódico algumas decisões da Justiça Divina relacionadas com o norte da Itália, não tem igual entusiasmo. Depois, os infernos literários de Quevedo — mera oportunidade espirituosa de anacronismos — e de Torres Villaroel — simples oportunidade de metáforas — somente evidenciaram o crescente desgaste do dogma. A decadência do Inferno está presente neles como em Baudelaire, este já tão incrédulo dos imperecíveis tormentos, que simula adorá-los. (Uma etimologia significativa origina o inócuo verbo francês gêner da poderosa palavra gehenna, das Escrituras.)
Passo a examinar o Inferno. O descuidado verbete pertinente do Dicionário enciclopédico hispano-americano, merece ser lido, não por suas indigentes informações ou por sua apavorada teologia de sacristão, mas sim pela perplexidade que deixa entrever. Começa por observar que a noção de inferno não é privativa da Igreja católica, precaução cujo sentido intrínseco é o seguinte: Não vão agora os maçons dizer que essas brutalidades foram introduzidas pela Igreja. E em seguida se dá conta de que o Inferno é dogma, e acrescenta um tanto apressadamente que é Glória imperecível do cristianismo atrair a si quantas verdades se achavam espalhadas entre as falsas religiões. Seja o Inferno um dado da religião natural ou apenas da religião revelada, o certo é que para mim nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder. Não me refiro à mitologia simplista de cortiço — esterco, espetos, fogo e tenazes — que tem vegetado aos seus pés, e que todos
Os escritores têm repetido, para a desonra de sua imaginação e da sua decência.1 Falo da estrita noção — lugar de castigo eterno para os maus — que constitui o dogma, sem outra obrigação do que a de situá-lo in loco reali, em um lugar preciso, e a beatorum sede distincto, lugar bem diferente daquele onde habitam os eleitos. Imaginar o contrário seria sinistro. No quinquagésimo capítulo de sua História, Gibbon quer reduzir o esplendor do Inferno e escreve que os dois vulgaríssimos ingredientes que são o fogo e a escuridão bastam para criar uma sensação de dor, a qual pode ser agravada infinitamente pela ideia de uma duração eterna. Esta advertência, difícil de satisfazer, prova talvez que a preparação do inferno é fácil, porém não suaviza o admirável espanto de sua invenção. O atributo de eternidade é o horroroso. O de continuidade — os fatos de que a perseguição divina carece de intervalos e de que no Inferno não existe o sono — é ainda pior, porém é de impossível imaginação. A eternidade da pena é o que se contesta.
Há dois argumentos belos e importantes para invalidar essa eternidade. O mais antigo é o da imortalidade condicional ou aniquilação. A imortalidade, argúi este compreensivo raciocínio, não é atributo da natureza humana decaída; é um dom de Deus em Cristo. Não pode, por conseguinte, ser mobilizada contra o mesmoindivíduo a quem é outorgada. Não é uma maldição, e sim uma dádiva. Quem a merecer, merece-a com o céu; quem prova ser indigno de recebê-la, morre para morrer — como dizia Bunyan — morre sem resto. O Inferno, segundo essa piedosa teoria, é o nome humano blásfemo do esquecimento de Deus. Um de seus propagadores foi Whately, autor de um opúsculo de famosa lembrança intitulado Dúvidas históricas sobre Napoleão Bonaparte.
Especulação das mais curiosas é aquela apresentada pelo teólogo evangélico Rothe, em 1869. Sua argumentação — enobrecida também pela secretamisericórdia de negar o castigo infinito aos condenados — observa que eternizar o castigo é eternizar o Mal. Deus, afirma ele, não pode querer essa eternidadepara o Seu universo. Insiste ser um escândalo supor-se que o homem pecador e o diabo possam burlar para sempre as benévolas intenções de Deus. (Ateologia sabe que a criação do mundo é obra de amor. O termo predestinação significa para ela predestinação à glória; a reprovação é simplesmente o oposto, uma não escolha traduzível em pena infernal, mas que não constitui um ato especial da bondade divina.) Advoga, enfim, uma vida decrescente e minguante para os réprobos, que antevê saqueando pelas margens da Criação, pelos vazios do espaço infinito, mantendo-se com sobras de vida. E conclui assim: Como osdemônios estão afastados de Deus e são incondicionalmente seus inimigos, sua atividade se exerce contra o reino de Deus, e se organiza em um reino diabólico que deve, naturalmente, eleger um chefe. A cabeça desse governo demoníaco — o Diabo — deve ser imaginada como cambiante. Os indivíduos que assumem o trono desse reino sucumbem à condição fantasmagórica do seu ser, porém se renovam entre seus diabólicos descendentes (Dogmatik, I, 248).
Chego agora à parte mais inverossímil da minha tarefa: os argumentos elaborados pela humanidade a favor da eternidade do Inferno. Passo a resumi-los, em ordem crescente de significação.
O primeiro é de índole disciplinária. Postula que o temor ao castigo radica precisamente na sua eternidade, e que duvidar dela é invalidar a eficácia do dogma e fazer o jogo do Diabo. É argumento de natureza policial, e não acredito que mereça ser discutido. O segundo se escreve assim: A pena deve ser infinita porque a culpa também o é por atentar contra a Majestade de Deus, que é um Ser infinito. Observou-se que esta demonstração prova tanto, que se pode depreender que não prova nada; prova que não há culpa venial e que todas as culpas são imperdoáveis. E eu acrescentaria que é um caso perfeito de frivolidade escolástica, e que seu equívoco reside na pluralidade de significados da expressão infinito que, aplicada ao Senhor, quer dizer incondicionado, assim como da pena que quer dizer incessante, e da culpa, que não é nada que eu consiga entender. Além do mais, arguir que uma falta é infinita por ser atentatória a Deus — que é um Serinfinito — é como arguir que a mesma falta é santa, porque Deus também o é, ou então como pensar que as ofensas feitas a um tigre devam ser raiadas.
Levanta-se agora sobre mim o terceiro dos argumentos, o único. Poderia, talvez, ser enunciado assim: Há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do livre arbítrio assim o necessita; ou temos a faculdade de construir para sempre ou a individualidade é ilusória. A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito mais: é inteiramente dramática. Impõe-nos um jogo terrível; concede-nos o direito atroz de perder-nos, de insistir no mal, de rechaçar as operações da graça, de ser alimento de um fogo que não se extingue, de fazer Deus fracassar em nosso destino, do corpo sem claridade no eterno e do detestabili cum cacodaemonibus consortium. Teu destino é coisa veraz, nos dizem; condenação eterna e salvação eterna estão no teu minuto; essa responsabilidade é tua honra. É um sentimento parecido com o de Bunyam: Deus não brincou ao converter-me; o demônio não brincou ao tentar-me; nem eu brinquei ao mergulhar em um abismo sem fundo, quando as aflições do Inferno se apoderaram de mim e tampouco devo brincar agora ao contar. (Grace abouding to the chief of sinners, the preface.)
Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até mesmo a perpetuidade de um Inferno, porém acredito também que é uma irreligiosidade crer nele.

  
Pós-data. Nesta página de simples informação posso, da mesma forma, comunicar um sonho. Sonhei que saía de outro sonho — prenhe de cataclismos e de tumultos — e que despertava em uma peça irreconhecível. Clareava; uma escassa luminosidade geral definia os pés da cama de ferro, a cadeira exata, a porta e a janela fechadas, a mesa vazia. Pensei com medo onde estou? e compreendi que não sabia. Pensei quem sou? e não pude reconhecer-me. O medo cresceu em mim. Pensei: Esta vigília desconsolada já é o Inferno; esta vigília sem destino será a minha eternidade. Despertei então, de verdade. Tremendo.

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