terça-feira, 13 de março de 2012

Chamados por Deus para sermos putos: Um ensaio Teo-psico-cinematográfico sobre as crises humanas.




Dedicado à Clayton Rêgo Lins e Samuel De Pádua (Samuca ex STBSB)

 Puto! Puto! porque me persegues?  (Joesaulo).

“Quando você não pode olhar dentro da alma de alguém, tente ir embora e depois voltar”. (Poema de Pasternak)

          Há mais ou menos três anos atrás, num domingo após um culto bem divertido, eu, Clayton, Will, Silvia e Luciana resolvemos reforçar nossa afetividade bebendo a urina de Cristo (cerveja) na casa do Clayton lá na Penha. Quem me conhece sabe que eu sou ruim de copo, pois depois da terceira leva, eu já começo a falar coisa com coisa, no entanto, naquele dia eu tomei todas e fiquei inteirasso, no entanto, o Clayton seminarista ficou muito doido.

          Já passava de meia noite quando resolvemos voltar. Pedi ao Clayton que me levasse até o Seminário do Sul. Naquela época eu ainda era patrimônio do Pavilhão XIX. Não sabia se iamos chegar vivos porque o motorista estava bêbado e sair no Rio depois das 00 horas é um risco de vida, no entanto, Clayton além de seminarista, é taxista, policial, cantor e marido nas horas vagas, daí ele pegou uma arma calibre santo e colocou um cinto cheio de balas e fomos para a Tijuca (naquela época eu morava lá). Quando entramos no quarto, nos deparamos com o Samuel (Grande Sam o Esteta) que estava numa crise sinistra que incluía depressão, não desejo de tomar banho e implicações teológicas pois ele acentuava que o problema do cristianismo é a metafísica. Daí apresentei o Clayton para o Sam, daí já viu NE? Conversa entre um bêbado e um depressivo crônico ...imagine o papo que rolou...

          Enquanto o Sam expunha suas decepções e raivas com a existência, Clayton assinalava que eu havia dito que ele  (Sam) era um jovem músico, teólogo, poeta hiper talentoso e que poderia ser uma benção na nação brasileira, no entanto, Sam retrucava dizendo que não ia dar não...Mas Clayton insistiu: Porque não vai rolar mano? “Porque eu estou PUTO com Deus, puto com minha família, puto com meu pastor, puto com meus amigos, puto com o Seminário do Sul, puto com o síndico do XIX, puto com minhas namoradas (tinha 4 MSN diferentes e 3 Orkut), enfim, estou puto comigo mesmo pois nada dá certo prá mim, eu não consigo terminar os cursos que começo...tranquei o curso de teologia várias vezes como se trancasse a porta do meu quarto“...O que fazer? Prá onde ir? Quem tem a senha da vida eterna?

          Sam via o fantasma da negatividade em tudo, no entanto, basta acreditarmos num fantasma que ele existirá para nós. Penso, logo a coisa existe prá mim. Basta pensarmos em algo, para haver realidade psíquica em nós. A grande questão não é se existe ou não aquele objeto no mundo real, mas o que aquele fantasma representa para aquela determinada pessoa naquele determinado momento?

          Clayton ouviu atentamente as histórias malucas de Sam, relatos de culpa, porque aliás, a culpa é um fantasma malvado que nos maltrata incessantemente. Quando o Sam desabafou que estava Puto com Deus, então o Clayton mesmo chapadão, usou de sensibilidade inconsciente e profetizou no Palace XIX: “Somos chamados por Deus para sermos Putos”.
          Deus nos chama do jeito que somos, do jeito que estamos. Eu venho como estou, eu venho como estou, porque Jesus por mim morreu, eu venho como estou diz a letra de um velho hino cristão. Sam arregalou os olhos e desabou em risos pois aquela palavra inesperada abalou as guaritas mais secretas. Como diz o cineasta sueco Ingmar Bergman no filme ATRAVÉS DO ESPELHO: “Traçamos um círculo imaginário ao nosso redor para afastar aquilo que não faça parte do nosso jogo secreto. Cada vez que a vida rompe esse círculo, os jogos se tornam insignificantes e ridículos. Então, construímos um novo círculo de defesas”. Mas Sam ficou desarmado naquela noite histórica.
               Quando o Clayton foi embora,  Sam comentou comigo: “Joe, esse seminarista do Longuini é porra louca demais...cara!! Adorei o cara, manerasso bicho...se fosse outro moralista, teria me afundado mais ainda no fundo de meu poço de águas crisicas. Ao invés de ele pedir pra eu orar, ler a Bíblia, encher o saco de Deus, fazer penitências, ele reconheceu meu estado humano, minhas fragilidades, meu clamor, minhas revoltas, minha dor profunda, meus anseios e desejos, meus recalques de seminarista desiludido com tudo“. Nessas horas de choro é preciso chorar com os que choram e cantar: “encoste a sua cabeçinha no meu ombro e chora (...); ame o seu próximo como se fosse você, como se a dor que ele sente fosse a que sente você“. Nessas horas é preciso suportar o silêncio da ausência de voz, é necessário ouvir o grito pois no grito há salvação. Não fuja das crises!!! Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram o Deus preparou para nós naquele dia de festa e dor, de álcool e doença. Vimos a Glória de Deus ao ver Sam, Clayton e eu morrendo de rir depois da profecia alcoólica de Clayton pois o clima mudou e tudo se fez novo. Sam viu uma luz no fim do túnel, pois a luz é o animal visível do invisível.

          Durante a trajetória terrena, Sam errou e acertou, mas na vida, tudo é caminho ou está “a caminho”, como na palavra TAO. Como pensava Martin Heidegger,  nunca caminhamos sozinhos, pois o Eu nunca está só na sua experiência do Dasein (ser-estar-no mundo). Durante a caminhada, o mundo vem ao nosso encontro em forma de coisas e escolhas. O filme O curioso caso de Benjamin Buttom nos ensina que a vida consiste de oportunidades que perdemos e daquelas que aproveitamos. Somos a soma de todas as nossas escolhas diz Wim Wenders em Asas do Desejo.

          Ter sido velha de Sam, foi um grande achado para mim. Pensei até em escrever uma tese de doutorado sobre a vida de Sam. Seriam necessárias muitas páginas porque Sam  foi um cara de cara prá vida, pois em todo momento ele jogou limpo consigo mesmo, como fez Sabine Spielrein, conhecida mundialmente por ter sido paciente e amante de Carl Jung. Aliás Spiel em alemão é jogo e rein é limpo. Spielrein significa Jogo Limpo. A história esqueceu Sabine Spielrein que foi lembrada apenas pelas crises e momentos afetivos que ela passou com Jung, no entanto, ela fez mais do que isso pois, atuou como psicoterapeuta na Creche Branca, escola moscovita voltada para a educação infantil. Ela fez um grande trabalho social lá no início do século XX.

          Num dos depoimentos durante o filme “Jornada da Alma” de Roberto Faenza, um velhinho relata que quando ela lecionava nos anos 20, havia muitas crianças, no entanto, uma delas passava o dia todo debaixo de uma mesa com os olhos fechados e com as mãos entrelaçadas. Ninguém conseguia separar aquelas mãos. Sabine não desistia na luta para libertar aquele menino daquele isolamento interior. Um certo dia, ela teve uma idéia genial ao trazer um macaco para tocar um piano de brinquedo. A criança ao escutar aquele som, foi abrindo os olhos paulatinamente e pela primeira vez abriu um sorriso naquela creche. Ao ver aquela cena animal-musical, as algemas que prendiam aqueles dedos foram se derretendo. “Sabe quem era aquela criança? perguntou aquele senhor. Era eu. Nunca vou esquecer o que Sabine fez por mim disse ele“.

          Mesmo que por acaso, talvez a grande sacada de Deus, foi levar o Clayton no nosso quarto, pois a simpatia claytiana fez com que as correntes que aprisionavam Sam derretessem com o passar do tempo. Como ocorreu com Sabine Spielrein, acredito que Sam foi vítima da história, dos colegas que desprezaram e viram nele um caso perdido, isto é, disseram que Deus fabricou-o para ser um herói, mas os acontecimentos fizeram ele se tornar um idiota. Porque eles pensaram dessa maneira? Porque não souberam esperar e recuar quando foi necessário, pois conhecer o outro com profundidade leva tempo e exige feeling. Como diz o poeta Pasternak“ Quando você não pode olhar dentro da alma de alguém, tente ir embora e depois voltar”.

          Moral da história: Sam voltou a estudar teologia no Seminário Teológico Betel (teve que recomeçar)...começar de novo (vai valer a pena ...); Sam está namorando com uma linda mulher (musa Adriana) e estão se amando loucamente; Sam é o atual diretor do ministério de música na Igreja Batista em Engenho de Dentro sobre a tutela do grande pastor Marcos Azen (aquele que tem coração e barriga de mãe). Sam é um exemplo de quem deu a volta por cima e reviveu; estava perdido e foi achado; Se trancou mas foi aberto com chaves viventes.

Vale a pena eu lembrar dessa história de angústia e felicidade , pois quem escreve a sua própria história herda a terra dessas palavras diz Godard.



Deixo como reflexão a linda e emocionante canção de Ivan Lins e Victor Martins.

http://letras.terra.com.br/ivan-lins/99567/  (clique e veja o vídeo cantado).





Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido



Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo...



FILMOGRAFIA UTILIZADA NO TEXTO



Os segredos de uma alma. George Pabst, 1926, Alemanha, 75 minutos.



Jornada da alma. Roberto Faenza, 2003, Itália.




Freud alem da alma. John Huston, 1962, Estados Unidos.


O curioso caso de Benjamin Buttom. Scott Fitzgerald, 2009, EUA, 151 minutos.







Asas do Desejo, Wim Wenders, Alemanha, 1987.




Através do Espelho, Irgmar Bergman, Suécia, 1961.




Spellbound (Quando fala o coração), Alfred Hitchcock, 1945, EUA, 141 minutos.








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