sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Ópera O Cavalinho Azul de Tim Rescala: A arte da religação em meio à tragicidade da súbita separação.



O Cavalinho Azul: A arte da religação em meio à tragédia da súbita separação.
Por Joevan Caitano (Joe)
“É preciso colocar a imaginação na escrita, porque a realidade também é subjetiva”(Prof. Dr. Roberto Machado . Aula sobre Deleuze e Proust –IFCS – 2009);

“Toda a estória se quer fingir de verdade. Mas a palavra é um fumo, leve demais para se prender a vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavras, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória” (Mia Couto – livro estórias abensonhadas).


        Dia 12 de outubro de 2012, dia das crianças era por volta de 15h40, e lá fui eu em direção à Escola de Música da UFRJ para assistir a ópera Cavalinho Azul de Tim Rescala. Quando cheguei na frente do local, havia muuuuuuuuuuuita gente afoita e uma fila enorme de pessoas ávidas pela entrada triunfal que conduziria aos átrios mais sagrados daquele animal encantado. Aquela muvuca toda me lembrou os bons eventos que ocorreram na minha infância nos colégios e baladas infanto-juvenis da vida, pois naqueles momentos de ebulição desejosa, a gente disputava, bradava, cochichava nos ouvidos das nossas tias e de outros responsáveis para que nos concedesse a mágica oportunidade de nos fazer transpassar pelo caminho estreito que conduzia a excitantes festejos promotores de delírios de júbilo.
        Enfim, depois de alguns minutos de espera estratégica, comendo pelas beiradas, consegui finalmente entrar e entrei vendo um fantoche que falava ludicamente com a platéia, gerando um clima de introdução introdutória. Depois foi a hora do cavalinho azul entrar em cena em parceria com a musicalidade dos cantores que retorizavam vocalmente sobre a história do menino que teve a sua afetividade infanto\animalesca castrada por um pai aflito economicamente que ousou através da venda dolorosa, amputar aquela junção daquelas almas gêmeas, em nome da sustentabilidade para aquela família frágil e instável. Apesar da tristeza, o menino chamado Vicente (Vicentinho) aceitou que o cavalo fosse vendido para o dia nascer feliz nas entranhas daquela fraternidade genealógica. Os amigos começaram a perguntar: Vicentinho! Para onde será que o teu cavalinho foi? Será se ele vai ficar viajando pelo Brasil ou ele vai ser exportado para o exterior? E você? Vai ficar parado ou vai atrás do teu afeto partido (do teu abraço partido)? Vicentinho, mesmo chorando, foi capaz de recitar um aforismo do Livro (Bíblia) do Desassossego.
  
“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela, poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero” (FERNANDO PESSOA, 2011, p. 42).


         Vicentinho esperou atentamente, pois para ele, a espera nada mais é do que um “á toa muito ativo”, por isso, resolveu ir atrás do prejuízo. Seguindo pistas de discretas testemunhas, ele foi parar num circo cujos donos eram três músicos velhacos. Em off, Vicentinho ficou sabendo que os 3 harmonizadores eram verdadeiros canalhas portadores de bandidagem humana demasiada humana...Bandidos????(!!!) Exclamou questionativamente aquele divivo menino...Aham...Já é...disse aquele guri visionário. Então ele chamou aqueles 3 elementos de altíssima periculosidade e pediu-os que escutassem atentamente a sua história de perda e luta e propôs auxilio ajuda de busca ao animal vendido\desaparecido, no entanto, os amigos mais chegados começaram a criticar metendo malha em Vicentinho pela iniciativa petitosa direcionada aos 3 homens sem caráter. Vicentinho deu o troco para aqueles amigos moralistas citando um aforismo nietzscheano:

“Que o caráter seja imutável não é uma verdade no sentido estrito; esta frase estimada significa apenas que, durante a breve duração da vida de um homem, os motivos que sobre ele atuam não arranham com profundidade suficiente para destruir os traços impressos por milhares de anos. Mas, se imaginássemos um homem de oitenta mil anos, nele teríamos um caráter absolutamente mutável: de modo que dele se desenvolveria um grande número de indivíduos diversos, um após o outro. A brevidade da vida humana leva a muitas afirmações erradas sobre as características do homem (NIETZSCHE, 2002. p. 49, aforismo 41)”.
       
          Após escutar a versão cavalheirística de Vicentinho, aqueles 3 bandidos, visualizaram a possibilidade de ganharem muita grana com aquela situação toda. Os três elementos, em companhia de Vicentinho e da amiga dele, partiram em comboio rumo à desconhecida toca onde talvez, residisse o sagrado cavalinho. Quando chegaram à cidade, viram que tudo era muito impessoal, pois cada um se ocupava de seus próprios afazeres pessoais, por isso, as pessoas não tinham muito tempo para procurar pelo tal do cavalinho em sites de procura e em comunidades nas redes sociais, porque CADA UM CUIDAVA DA SUA VIDA. Ao pedir ajuda nas proximidades da Cinelândia no Centro do Rio, uma jovem estudante, movida de paciência e compaixão, pegou o celular, acionou a internet, e pediu ajuda pelo Twitter e Facebook solicitando informações sobre um cavalinho azul que tinha poderes mágicos teatrais.
          Aos poucos, alguns internautas freqüentadores da Lagoa Rodrigo de Freitas, sinalizaram ter visto um cavalinho azul passeando suntuosamente com um dos filhos do Xeike Batista cercado de seguranças num feriadão. Aqueles 3 bandidos ficaram furiosos e bradaram: RESSARCIMENTO OU MORTE....E perseguiram bravorosamente aquele playboy munidos com muita energia portadora de loucura e de ternura, no entanto, nenhum tiro foi disparado e nenhum bafo de fúria foi exalado, pois aquele cavalo foi encontrado e devolvido após estratégicas negociações sobre os direitos humanos na infância e na adolescência bem como reflexões acerca da tortura e da violência psíquica contra as crianças advindo de perdas irreparáveis injetoras de dores na pele da alma. Ao comentar sobre o pensamento de Dostoievski, o crítico George Steiner afirma que “torturar ou violentar uma criança é dessacralizar no homem a imagem de Deus, onde essa imagem é mais luminosa (STEINER, 2006, p. 150).”
        Sem transtornos verbais, nem tampouco, vítimas fatais, o Cavalinho Azul foi entregue aquele menino sonhador que o abraçou amorosamente e apertosamente enquanto recitava Drummond de Andrade nos salões acústicos auditivos daquele cavalinho mágico: Meu Lindo Azuzinho! “Amo porque te amo, porque o amor é um estado de graça, de anseio de recomeço e retomada de forças vitais”. E ficaram tão cicatrizados, que ninguém disse que era colado. Ambos se beijaram, partiram e viveram felizes até que a morte os separou-os levando-os para o túnel misterioso do Caosmo criativo desintegrativo, pois nascer é se deparar com o próprio esboço\rascunho - se deparar com o ser estar aí no mundo, jogado, lançado e viver, é abertura - viver é preencher este esboço\rascunho, porém, morrer, é a cumulação de toda a trajetória de toda experiência vivida, diviva e repartida, culminando na perfeição. Morrer é quando o homem vem todo inteiro e para fora desde a suas mais profundas profundezas.
         Vicentinho e o Cavalinho azul são exemplos de uma amizade que vai além da morte. Que tal a gente assistir ou re-assistir o antigo filme O CORCEL NEGRO?


Toda felicidade que há na terra,
Meus amigos, vem da luta!
Sim, a amizade requer
Os vapores da pólvora!
Em três coisas se unem os amigos:
São irmãos na miséria,
Iguais ante o inimigo,
E livres diante da morte!
(NIETZSCHE, 2001, p. 37)

Parabéns ao grupo (coro) Brasil Ensemble (EM-UFRJ) dirigido pela maestrina Profª Drª Zezé Chevitarese que promoveu este concerto teatralizado e a todas as pessoas que atuaram nos bastidores pela sustentabilidade da artística produção. Sem música e sem personas (máscaras) a vida seria um erro.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA NO CAVALINHO CULT.

COUTO, MIA. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia Das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. A GAIA CIÊNCIA. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia Das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano. Volume I. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia Das Letras, 2002.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização de Richard Zenith. São Paulo: COMPANHIA DE BOLSO, 2011.
STEINER, George. Tostói ou Dostoievski. Coleção estudos. Tradução: Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.

FILMOGRAFIA:
BALLARD, Carroll. CORCEL NEGRO, 1979, Drama\Aventura. EUA, 112 minutos.


Joevan Caitano é mestre em Musicologia pela UFRJ com vistas ao doutorado em Musicologia Histórica através de parceria entre Universidade Brasileira e Universidade Alemã com pesquisa no âmbito da Musicologia Comparada.
Hans-Joachim Koellreutter und die Internationalen Ferienkurse für Neue Musik in Darmstadt: Konvergenzen zwischen den Kompositionstechniken und den pädagogischen Herangehensweisen im Jahr 1951 und den neuen musikalischen und pädagogischen Tendenzen der im 21. Jahrhundert in der „Neuen Musik“ angewandten Erziehung und Komposition

ÁREAS DE INTERESSES: (Schwerpunkt)
Música de Concerto do Pós Segunda Guerra Mundial,
Música Popular Brasileira,
Piano\Composição\ Arranjos em Música Popular –MPB\JAZZ e afins.
Música e Educação (Educação Musical).
Música e Filosofia (Nietzsche, Heidegger, Adorno, Deleuze e afins),
Música e Literatura (Proust, Dostoievski e afins),
Música e Cinema (Godard, Fassbinder, Rossellini, Lars Von Trier e afins)
Música Sacra e Teologia \Teologia e MPB.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

CINEMA COMO PRÁTICA SOCIAL. (livro de Graeme Turner)


Entendendo o cinema como componente de um processo sociocultural, e não simplesmente como 'sétima arte', o autor procura analisar a teoria da produção cinematográfica dentro deste contexto. Trazendo exemplos, é feita uma leitura destes segundo diversas abordagens, para a compreensão do seu significado sociocultural.

Leia o livro aqui:


RIO FILME. Festival do Rio 2012. Confira a programação.



Para maiores informações, clique aqui:

http://2012.festivaldorio.com.br/


CINEMA EM TRANSITO: CINEMA, ARTE, CONTEMPORANEA E NOVAS MIDIAS (livro de André Parente)



O que pode o pensamento? Difícil responder sem considerar com o que ele se compõe, qual sua matéria. A matéria do pensamento é o que lhe solicita, o que lhe provoca, mas ao mesmo tempo o que lhe atravessa em sua composição, o trabalho do conceito. O livro que você tem em mãos assume a difícil tarefa de articular momentos de um pensamento em diferentes embates, esse livro é um acúmulo desses pequenos embates. Há algo de lúdico na leitura de um livro assim, aceitar o jogo de se mover junto, de acompanhar os lances, as voltas, as retomadas. São três os movimentos que compõem esse livro, um primeiro que articula conceitos, um segundo em direção ao outro, à obra do outro enquanto intercessor e um terceiro movimento que retorna à obra do autor enquanto gesto artístico, a obra já como um gesto de pensamento.

No gesto de publicar um livro, uma figura sempre volta, o arremesso. O que é esse gesto? Para onde ele aponta? Como ele se prolonga? Onde principia, onde finda? Textos escritos durante seis anos, cada um, um pequeno arremesso, recompor esses pequenos gestos num outro esforço. Um arremesso começa sempre antes e só finda depois. Esse é um dos sentidos do arremesso, seu movimento é sempre duplo, uma linha que volta enquanto a outra segue. O que retorna, o que insiste no pensamento de um autor? Cada novo texto-arremesso guarda a marca do que foi lançado, mas já é um outro. É esse o jogo, fazer girar o pensamento numa espiral de sentidos tramados no que retorna, assim definimos o que nos inquieta, o que insiste em nós como uma necessidade de pensamento.

Pensar é tomar lugar. André tem a vantagem de transitar bem entre três lugares: filosofia, arte contemporânea e teoria do cinema. Isso o posiciona bem para enfrentar o conjunto de questões que aborda neste livro: Cinema, arte contemporânea e novas mídias. Quatro linhas me parecem recorrentes nesses textos. Primeiro uma visão do virtual não ancorado num dispositivo técnico, é preciso não reduzir o virtual à dimensão aberta da imagem de síntese. É estratégico operar o virtual como expansão do real num campo problemático que amplia a noção de possível. Segundo, uma ideia de dispositivo que transita da filosofia para a teoria do cinema e da arte sem perder sua complexidade, sua precisão. 

Os textos da primeira parte deste livro são emblemáticos dessa preocupação. É preciso garantir que a amplitude da dimensão operacional do dispositivo não nos lance nas armadilhas da generalidade. Terceiro, uma proximidade ou, poderíamos dizer, uma afinidade eletiva com um circuito de invenção. Isso é claro na escolha dos artistas e obras a partir dos quais o autor realiza sua costura de diversos momentos da história da arte, no intuito de compor um quadro daquilo que retorna como invenção.

Tal fato nos leva ao quarto ponto, uma relação anacrônica com a história, uma tecitura contínua do que retorna com o que emerge, a construção de linhas de sentido que articulam obras e pensamento em torno de questões que retornam, que insistem como linhas de afirmação de invenção na produção audiovisual. Não é pouco e diria que toda a multiplicidade desse livro está atravessada nessas quatro linhas e acompanhá-las requer um corpo disponível a esse jogo. Com que corpo você pretende ler esse livro? 

A TRAIÇÃO DE MANUEL PUIG: melodrama, cinema e política em uma literatura à margem


A traição de Manuel Puig

A traição de Manuel Puig: melodrama, cinema e política em uma literatura à margem

 Maurício de Bragança

Maurício de Bragança é graduado em História e Cinema, com Mestrado em Comunicação e Doutorado
e Pós-Doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é Professor Adjunto
do Departamento de Cinema e Video e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.


Achincalhado pela crítica e adorado pelo público, o melodrama trabalha com o vulgar transformado num “drama de segunda ordem”, num produto de quinta categoria. Utilizando-se de uma matéria-prima cursi, exagerada, grosseira, o melodrama indica o lugar do popular. Em Manuel Puig, o melodrama está aserviço da desestabilização da dicotomia centro e periferia, problematizando estas relações e superando o que o escritor argentino acreditava ser uma intolerância dos intelectuais de esquerda, distanciados da vivência cotidiana deste popular em nome de quem estes mesmos intelectuais falavam.

A abordagem do melodrama, em última instância, como pretendemos demonstrar neste livro, é uma discussão acerca do lugar de fala do popular - um espaço que está marcado pelo embate entre as sujeitos culturais que negociam seus projetos políticos. Na configuração desta arena literária, aponta-se a atuação de um discurso hegemônico. Entretanto, em todo discurso hegemônico operam-se também resistências. Nosso empenho, ao analisar a literatura de Manuel Puig, foi o de realçar os conflitos em torno das hegemonias e resistências na produção cultural latino-americana, a partir doregistro da linguagem do melodrama.
Pensar o melodrama na América Latina é pensar as diversidades presentes neste continente, em suas correntes regionais ou nacionais, como totalidades contraditórias. A abordagem do melodrama latino-americano deve levar em consideração sua formação histórica a partir dos modelos que geraram as contradições próprias a sua experiência. Nossa pesquisa e análise do melodrama, seja em sua matriz literária, seja em suas reapropriações, sempre estiveram atentas ao fato de que estávamos trabalhando com um objeto cuja matéria primeira era a contradição. Essas contradições foram assumidas por Manuel Puig, ao refletir sobre a cultura latino-americana frente aos discursos hegemônicos centrais, a partir de um modelo problemático de relação marcado pelas imagens emblemáticas de sedução e traição.
O melodrama, na América Latina, veio se inserir num cenário composto pela transculturação, pela heterogeneidade e pelo hibridismo, em zonas intermediárias de alteridades onde eram debatidas questões como o valor estético e a cultura; o sujeito e a representação; o corpo, o erotismo e a performance; a diferença, o poder e o gênero; a história e a teoria; a produção, a circulação e o consumo cultural, articulando de forma problemática os diversos lugares de enunciação. Assim, a literatura de massa, a cultura popular e o predomínio de um determinado conceito mercantil de cultura complicavam ainda mais o já complexo universo de reflexão sobre a América Latina.
Manuel Puig sempre perseguiu estes paradoxos que compunham o cenário do continente a partir de sua experiência argentina. Seu olhar buscava novos horizontes que traduzissem suas angústias ao mesmo tempo em que tentava fugir da feiúra dos pampas, das ausências contidas nesta paisagem, um lugar marcado pela monotonia da paisagem, sem acidentes de relevo, sem a presença do mar. Esta paisagem impelia o escritor argentino a outros cenários.
Numa entrevista a Jorgelina Corbatta, o escritor afirmava a importância dos trópicos em seu trabalho, dizendo que sempre tivera vontade de viver nos trópicos, aos quais encarava como uma espécie de paraíso perdido. Seu percurso literário como escritor de romances começa com as tensões da traição de uma diva do cinema hollywoodiano (La traición de Rita Hayworth, publicado em 1968) e termina, em finais dos anos oitenta, com a imagem sempre perseguida de uma noite tropical (Cae la noche tropical, publicado em 1988). É lá, numa espécie de trópico, que pulsa a vida para os personagens de Manuel Puig. Em sua obra, esse lugar quase imaginário se traduzia em um horizonte mítico, um escape possível da aspereza marcada pela negação e interdição oferecida pelos pampas.
Os trópicos mostravam-se modernos, cosmopolitas, cheios de vida, uma paisagem em technicolor. Assim, Manuel Puig, de uma maneira meio enviesada, meio tortuosa, aproxima-se dos companheiros de sua geração ao afirmar uma literatura cosmopolita, atravessada por imagens que transcendiam o mero cenário da narrativa, que naquele momento podia situar o universo em Macondo, em Comala, no sertão de Guimarães Rosa ou na própria Coronel Vallejos. A superação dos limites regionais na recriação destes universos recompunha uma mitologia latino-americana com ares universais.
Porém, diferentemente destes escritores, mais preocupados com um projeto edipiano de superação das literaturas centrais, em afirmar-se autônomos e superiores a seus “pais europeus”, Puig parecia mais seduzido por aspirações adâmicas. Seu impulso maior indicava uma necessidade urgente de reconfigurar seu paraíso particular, recriar o lugar de onde viera (ou melhor, o lugar para onde desejava ir) num cenário onde os trópicos tão cobiçados eram recriados em estúdio. Neste cenário, a trilha sonora era fundamental. Na realidade em technicolor produzida pelo cinema nos textos de Puig, os tangos e boleros tornavam os heróis invioláveis, que recobravam vulnerabilidade quando a música cessava. As letras das canções populares enchiam as personagens das verdades mais íntimas programadas pelo mundo dos sentimentos. Os trópicos fundavam-se na melodia interpretada de forma exagerada pelos deuses do rádio, redimensionando o que havia de sagrado na banalidade do dia-a-dia e conferindo um destino de mulher fatal à menos fatal das mulheres.
Em 1978 Manuel Puig escreveu um roteiro cinematográfico que nunca foi filmado. Intitulado Recuerdos de Tijuana, foi inspirado nos melodramas de cabaretera mexicanos dos anos quarenta. Ali está a aventura própria deste gênero recheada de assassinos, perseguições, moças viciadas e raptadas, mulheres de bandidos que se apaixonam pelo mocinho, e os indefectíveis versos do bolero de Agustín Lara: “vende caro tu amor, Aventurera...”.
No prólogo que apresenta o roteiro, o autor argentino instiga:
                                                                                                                                                                                                Como ler um roteiro de um filme? Num bom romance o autor vai dando corpo a seus personagens, descreve-os ou deixa intuí-los através dos mais variados recursos literários. Aqui, em contrapartida, o leitor se depara com uma liberdade muito maior de imaginá-los. Uma possível leitura poderia ser feita atribuindo-se a esses personagens rostos de atores conhecidos de qualquer época e nacionalidade. Mas creio que muito mais criadora seria aquela leitura em que para animar cada personagem se escolhesse o rosto dos amigos e inimigos que povoam a realidade de cada leitor.

É interessante que, para ler um roteiro de cinema, Puig proponha ao leitor que abandone o universo imaginário das estrelas e se aproxime de uma realidade mais objetiva, mais reconhecível numa dimensão concreta e particular de cada um, num registro que, de uma certa maneira, aponta inclusive para indícios não ficcionais “no rosto dos amigos e inimigos que povoam a realidade de cada leitor”.
Puig jamais abriu mão do drama, mesmo quando, na segunda metade dos anos cinquenta, decidiu ir à Itália como estudante de cinema, em um momento em que o neo-realismo já era um fato consumado (e consagrado) no cinema italiano. As diretrizes ditadas pelo tom desdramatizado dos preceitos neo-realistas rechaçavam a “inventividade” e o drama tal como eram alimentados por Hollywood. Coco, como era chamado na intimidade, jamais havia pensado em ser romancista: seu destino era o cinema. Mas o momento era o de um modelo de cinema crítico e renovador, de denúncia social e política, que sentenciava a morte de Greta Garbo. Sobre a necessidade de um cinema político, Puig nunca discordou, mas não conseguia compreender porque o compromisso político de denúncia era incompatível com a urdidura dramática. Por que condenar Hollywood pelo fato de saber narrar? Segundo as percepções do jovem Puig sobre a gramática neo-realista ditada por Cesare Zavattini, saber narrar era a prova inquestionável de um discurso reacionário. O próprio cinema francês a la Renoir e Carné também era acusado de preciosista, demasiado personalista para a nova estética propalada pelo neo-realismo.
O escritor argentino aceitou o desafio e, ancorado no cinema rechaçado pelo projeto neo-realista, foi escrever romances que problematizassem as questões sociais argentinas (e latino-americanas) de uma forma praticamente inédita. Abandonando os sets de filmagem, mas adentrando na literatura pela imagem cinematográfica, Puig propôs uma nova abordagem da realidade na literatura, a partir do relato bem contado, de um enredo dramático focado numa imaginação melodramática que, porém, tornava-se densa e complexa na medida em que camadas antes ocultas desta realidade representada se revelavam. 
Essa dimensão melodramática no enfoque da realidade na América Latina mostrava-se para Puig quase como um destino inevitável. Sob este eixo, as imagens que revelavam uma realidade complexa, sustentada por uma discursividade sentimental, podiam ser apreendidas e assimiladas pelo grande público.

A cultura de massa e a linguagem presentes nos processos hegemônicos guardam em seu interior espaços de articulação de resistências. No melodrama, o repertório aparentemente inofensivo e excessivamente sentimental, que se apresenta por vezes açucarado, por vezes amargo, não tem nada de ingênuo. Se de fato nos dispusermos a enfrentá-lo sem os preconceitos que costumam avalizar uma abordagem intelectual de alcance iluminista, perceberemos os sinais do embate provocados por uma história de dominação, exclusão e resistência que se apresentam em sua integridade e complexidade.
Entrevista de Manuel Puig a Joaquín Soler Serrano, no programa A fondo, pela Radiotelevisión Española, em 1976:
 

Sobre o livro A traição de Manuel Puig: melodrama, cinema e política em uma literatura à margem

A traição de Manuel Puig, recém-lançado, é um ensaio publicado pela EdUFF no qual Bragança aborda a obra do escritor argentino a partir do melodrama, que se abre, em última instância, como uma discussão acerca do lugar de fala do popular – um espaço marcado pelo embate entre as forças políticas que negociam seus projetos. Na configuração do campo literário e cultural latino-americano, o melodrama se apresenta como estratégia de resistência aos discursos hegemônicos que operaram padrões de dominação estabelecidos pelos estatutos canônicos no continente.