Anotação em 1997: Um grande, magnífico filme. O espectador sente que Andrzej Wajda quer dissecar as reações das pessoas
na Alemanha durante o nazismo; quer entender por que os alemães permitiram o
nazismo. Não sei o romance no qual ele se baseou, mas o filme é um estudo da
fragilidade do caráter das pessoas comuns de uma cidade pequena, um microcosmo
do que para o diretor é a Alemanha toda.
A segunda grande preocupação de Wajda é ver as
feridas que o nazismo deixou nas pessoas na época em que o filme foi
feito - 1983.
Os personagens são todos cheios de matizes –
como é necessário para uma obra ser boa e profunda. Poucos são crápulas
escarrados. A vizinha do lado de Pauline, sra. Wyler, a que tem inveja de
Pauline e deseja tomar o armazém dela (e consegue), é a única que é de fato má;
é invejosa, despeitada; é também camaleônica; nos dias atuais, quando recebe a
visita do filho de Pauline, então com 49 anos, acha por bem dizer que o marido
era antifascista. E era mesmo; não vai na conversa da mulher; ao contrário, diz
que eles não têm nada a ver com o fato de Pauline ter um caso com o jovem
prisioneiro polonês, Stani; e insiste em que a mulher não deve denunciá-los. O
velho casal para o qual Stani trabalha também é dividido; a mulher acha
vergonhoso a alemã ter um caso com o polonês; o marido não se importa com isso,
e gosta do polonês. Elisbeth, a maior amiga de Pauline, quer que ela deixe de
ver o polonês, com medo de o caso ser descoberto e a amiga ser presa, mas gosta
dela profundamente, tenta ajudá-la e a ajuda de fato.
O próprio oficial da Gestapo que prende o casal
não é um carrasco brutal; manda enforcar o polonês porque é seu dever, mas tem
todo o cuidado para que ele não sofra.
Embora sejam pessoas comuns, algumas piores,
outras melhores, o fato é que todos, na pequena comunidade, acham natural que
as coisas sejam como são, que uma alemã que trepe com gente de “raças
inferiores” seja presa e que o amante seja morto. Não há contestação à ordem
nazista – mesmo dentro de casa, mesmo onde ninguém mais poderia ouvir.
E mais: como grupo, eles reagem de maneira
feroz, animal, imbecil. Vão todos à praça onde Pauline é exibida com o cartaz
em que se lê Polen Liebchen – amante de polaco. A única a fazer um gesto
carinhoso é a melhor amiga de Pauline, que tampa os olhos do filhinho da amiga
para que ele não veja a mãe passando pelo instante de suprema humilhação.
A estrutura narrativa é perfeita. Na primeira
seqüência, Herbert, o filho de Pauline, em um trem, voltado para a câmara,
conta para o espectador que pouco antes, no dia tal de 1983, ele fez 49 anos; e
seu filho Klaus, que está com ele no trem, fez 17. Os dois estão indo para
Brombach, onde ele, o personagem, esteve pela última vez 40 anos antes. (No
momento em que diz isso, aparece, numa cena bem rápida, um garoto chupando um
enorme picolé com a suástica.) Ele acha que esta pode ser a últimaoportunidade para averiguar uma coisa, e está
levando o filho junto. Em seguida, depois de falar para a câmara, vira-se para
onde está o filho e o acorda. Em uma mesma tomada, Wajda passa da primeira para
a terceira pessoa, faz como se fosse um documentário e o documentário vira
ação, narrativa, ficção.
Quando Herbert e o filho chegam à cidade, a ação
volta no tempo, volta de 1983 para 1944. Ao longo do filme, algumas poucas
vezes – não mais que quatro ou cinco – volta-se a 1983, pai e filho visitando
os lugares onde a mãe viveu seu drama 40 anos antes, entrevistando
sobreviventes, fazendo perguntas. Basicamente, o que Herbert quer saber são as
circunstâncias em que sua mãe foi foi delatada à Gestapo, e quem a delatou.
Há uma tomada em que passado e futuro se fundem.
Aparece Pauline, acho que saindo do hospital onde tinha ido ver o amante
polonês, e a câmara sobe para um pedaço do hospital, onde em 1983 Herbert e o
filho estão conversando com Elisbeth. É genial.
Na seqüência final, o filho de Pauline está de
volta à sua casa. E de novo, assim como na primeira seqüência, fechando o
ciclo, ele conversa com o espectador. Conta o que aconteceu depois que o
polonês foi enforcado, e faz suas considerações finais.
Há um diálogo especialmente brilhante. O polonês
Stani está preso, mas ele tem o tipo parecido com o dos arianos, e o oficial da
Gestapo quer “arianizá-lo”. Stani diz que não quer. O oficial diz para o médico
não entender por que alguém de uma raça inferior se recusa a passar a pertencer
à raça superior. O médico responde: Talvez ele não ache que exista uma raça
superior. O oficial da Gestapo não responde nada – mas pode-se ver que ele
simplesmente não consegue entender o que está acontecendo, como aquilo é
possível.
Hanna Schygulla está um brilho. É uma
interpretação esplêndida, extraordinária, como poucas que já vi. Seu rosto
demonstra com intensidade diversos, diversos sentimentos – ódio, amor,
perplexidade, tesão, carinho, medo, desprezo. Nunca a vi tão bonita quanto
neste filme. Nos momentos necessários, ela transmite uma sensualidade absoluta,
espantosa, fascinante.
Eis a resenha que escrevi sobre o filme para o
CD-ROM da Guerra, antes de vê-lo. Está fraco, mas não tem erro de informação.
O caso de amor clandestino de uma
comerciante do interior da Alemanha e um polonês prisioneiro de guerra se transforma
em tragédia por causa dos mexericos, das suspeitas e da ambição dos habitantes
da cidadezinha. Um dos bons filmes sobre as reações cotidianas dos alemães que
permitiram a ascensão do nazismo; Wajda conta com o talento de Hanna Schygulla,
a musa de Fassbinder, e consegue recriar a atmosfera de paranóia e opressão da
Alemanha durante a guerra.
Um Amor na Alemanha/Eine Liebe in Deutschland
De Andrzej Wajda, Alemanha Ocidental-França, 1983.
Com Hanna Schygulla, Armon
Mueller-Stahl, Marie-Christine Barrault
Roteiro Agnieszka Holland e Andrzej Wajda
Baseado no romance de Rolf Hochhuth
Música Michel Legrand
Cor, 132 min.
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