BORGES, Jorge Luis. Borges oral &
sete noites.
O LIVRO
Lembro-me de que há muitos anos
realizou-se uma pesquisa de opinião sobre o que seria pintura. Perguntaram isso
a minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de dar alegria com
formas e cores. Eu disse que a literatura também é uma forma da alegria. Se
lemos alguma coisa com dificuldade, é que o autor fracassou. Por isso considero
que um autor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra exige um
esforço. Um liro não deve exigir um esforço, a felicidade não deve exigir um
esforço. Penso que Montaigne está certo. Depois ele enumera os autores que
gosta. Cita Virgílio, diz preferir as Geórgias
à Eneida; eu prefiro a Eneida, mas isso não tem nada a ver.
Montaigne fala dos livros com paixão, mas diz que, embora os livros sejam uma
felicidade, são ao mesmo tempo um prazer lânguido.
[...]
Fui professor de literatura inglesa
durante vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos
Aires. Sempre aconselhei meus estudantes a ter pouca bibliografia, a não ler
críticas, a ler os livros diretamente; talvez deixem de entender muitas coisas,
mas sempre terão prazer e estarão ouvindo a voz de alguém. Eu diria que o que
um autor tem de mais importante é sua entonação; o que há de mais importante
num livro é a voz do autor, essa voz que chega até nós.
Dediquei parte de minha vida às
letras, e acredito que uma forma de felicidade é a leitura; outra forma de
felicidade, menor, é a criação poética, ou o que chamamos criação, que é uma
mistura de esquecimento e recordação das coisas que lemos.
A opinião de Emerson coincide com a
de Montaigne no fato de que devemos ler unicamente aquilo de que gostamos, de
que um livro precisa ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras! Eu
me dediquei mais a reler do que a ler, acho que reler é mais importante que
ler, com o detalhe de que para reler é preciso ter lido. Pratico este culto ao
livro. Posso afirmá-lo de um modo que talvez pareça patético e não quero que
seja patético; quero que seja como uma confidência que faço a cada um de vocês;
não a todos, mas a cada um individualmente, porque “todos” é uma abstração e
“cada um” é verdadeiro.
[...]
O conceito de um livro sagrado, do
Corão ou da Bíblia ou dos Vedas – onde também se afirma que os Vedas criam o
mundo – pode ter ficado para trás, mas o livro ainda conserva a santidade, que
devemos cuidar para que não desapareça. Pegar um livro e abri-lo contém a
possibilidade do fator estético. O que são as palavras deitadas num livro¿ O
que são aqueles símbolos mortos¿ Nada, absolutamente. O que é um livro, se não
o abrimos¿ É simplesmente um cubo de papel e couro, com páginas; mas, se o
lemos, acontece uma coisa estranha, acho que ele muda a cada vez.
Heráclito disse (repeti inúmeras
vezes) que ninguém vai duas vezes ao mesmo rio. Ninguém vai duas vezes ao mesmo
rio porque as águas mudam, mas o mais terrível é que nós somos tão fluídos
quanto o rio. Toda vez que lemos um livro, o livro se modificou, a conotação
das palavras é outra. Além disso, os livros estão impregnados de passado.
[...]
Se lemos um livro antigo é como se
lêssemos todo o tempo transcorrido entre o dia em que ele foi escrito e nós.
Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas,
podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas ele ainda conserva
alguma coisa sagrada, alguma coisa divina, não com respeito supersticioso, mas
com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Era o que eu queria dizer-lhes hoje.
24 de maio de 1978
Fonte:
BORGES, Jorge Luis. Borges
oral & sete noites. Tradução: Heloisa Jahn São Paulo: Companhia Das
Letras, 2011.
Páginas 18-21
Borges oral & sete noites
A imortalidade
[...]
Para nós, hoje, esses conceitos da
alma e do corpo são suspeitos. Podemos fazer uma breve evocação da história da
filosofia. Locke afirmou que só o que existe são percepções e sensações, e
lembranças e percepções a respeito dessas sensações; que a matéria existe e os
cinco sentidos nos dão notícia da matéria. E em seguida Berkeley afirma que a
matéria consiste numa série de percepções, e que essas percepções são
inconcebíveis sem uma consciência que as perceba. O que é o vermelho¿ O
vermelho depende de nossos olhos, nossos olhos também são um sistema de
percepções. Depois vem Hume, que refuta as duas hipóteses, e destrói a alma e o
corpo. O que é a alma, senão algo que percebe, e o que é a matéria, senão algo
percebido¿ Se, no mundo, os substantivos fossem suprimidos, ele ficaria
reduzido aos verbos. Como diz Hume, não deveríamos dizer eu penso, porque “eu” é um sujeito; deveríamos dizer pensa-se, assim como dizemos chove. No caso dos dois verbos temos uma
ação sem sujeito. Quando Descartes disse penso,
logo existo, deveria ter dito: algo
pensa, ou algo se pensa, porque “eu” supõe uma entidade e não temos o
direito de supô-la. Seria preciso dizer:
pensa-se, logo algo existe.
Quanto à imortalidade pessoal,
vejamos que argumentos a defendem. Citaremos dois. Fechner diz que nossa
consciência – o homem – está equipada de uma série de anseios, apetências,
esperanças, temores, que não correspondem à duração de sua vida. Quando Dante
diz: n´el mezzo Del cammin di nostra vita,
faz-nos lembrar que as Escrituras nos recomendavam setenta anos de vida. Assim,
depois de completar 35 anos, teve aquela visão. Nós, no curso de nossos setenta
anos de vida (infelizmente já ultrapassei esse limite; já estou com 78),
sentimos coisas que não têm sentido nesta vida. Fechner pensa no embrião, no
corpo antes de sair do ventre da mãe. Naquele corpo há pernas que não servem
para nada, braços, mãos, nada disso tem sentido; são coisas que só podem ter
sentido numa vida ulterior. Devemos pensar que o mesmo acontece conosco, que
estamos cheios de esperanças, de temores, de conjecturas, e não precisamos de
nada disso para uma vida puramente mortal. Precisamos do que os animais têm, e
eles podem prescindir de tudo isso, que pode ser usado depois, em outra vida
mais plena. É um argumento em favor da imortalidade.
Citaremos o sumo mestre santo Tomás de
Aquino, que nos legou esta sentença: Intellectus
naturaliter desiderat esse semper (A mente espontaneamente deseja ser
eterna, ser para sempre). Ao que poderíamos responder que ela também deseja
outras coisas, muitas vezes deseja cessar. [...] Há uma estrofe do poeta
francês Leconte de Lisle: “Libertai-o do tempo, do número e do espaço e
devolvei-lhe o repouso que lhe haviam tirado”.
Temos muitos anseios, entre eles o da
vida, o de ser para sempre, mas também o de cessar, além do temor e de seu
avesso: a esperança. Todas as coisas podem realizar-se sem imortalidade
pessoal, não precisamos dela. Eu, pessoalmente, não a desejo e a temo; para mim
seria horroroso saber que vou continuar, seria horroroso saber que vou
continuar sendo Borges. Estou cansado de mim mesmo, de meu nome e de minha
fama, e quero me libertar disso tudo.
[...] Alimentamos a noção de que a
imortalidade é privilégio de uns poucos, dos grandes. Mas cada um se considera
grande, cada um tende a pensar que sua imortalidade é necessária. Eu não
acredito nisso. Temos depois outras imortalidades que, acredito, são as
importantes. Viriam a ser, em primeiro lugar, a conjectura da transmigração.
Essa conjectura está em Pitágoras, em Platão. Platão via a transmigração como
uma possibilidade. A transmigração serve para explicar aventuras e desventuras.
Se somos venturosos ou desventurados nesta vida, isso decorre de uma vida
anterior; estamos recebendo os castigos ou recompensas. Há uma coisa que pode
ser difícil: se nossa vida individual, como acreditam o hinduísmo e o budismo,
depende de nossa vida anterior, essa vida anterior por sua vez depende de outra
vida anterior, e assim prosseguimos até o infinito para o passado.
Já se disse que, se o tempo é
infinito, o número infinito de vidas no passado é uma contradição. Se o número
é infinito, como uma coisa infinita pode chegar até agora? Pensamos que, se um
tempo é infinito, creio eu, esse tempo infinito tem de abarcar todos os
presentes e, em todos os presentes, por que não este presente, em Belgrano, na
Universidade de Belgrano, vocês comigo, juntos¿ Por que não também este tempo¿
Se o tempo é infinito, em qualquer instante estamos no centro do tempo.
Pascal acreditava que, se o universo
é infinito, é uma esfera cuja circunferência está em todos os lugares e o
centro em nenhum. Por que não dizer que este momento tem atrás de si um passado
infinito, um ontem infinito, e por que não pensar que este passado também passa
por este presente¿ Em todos os momentos estamos no centro de uma linha infinita, em qualquer ponto do centro infinito estamos no centro do espaço, já que o espaço e o
tempo são infinitos.
Os budistas acreditam que vivemos um
número infinito de vidas, infinito no sentido ilimitado, no sentido estrito da
palavra, um número sem princípio nem fim, algo como um número transfinito da
matemática moderna de Kantor. Neste momento estamos num centro – todos os
momentos são centros – desse tempo infinito. Neste momento estamos conversando,
vocês e eu: vocês refletem sobre o eu eu digo, estão ou não estão de acordo.
A transmigração nos daria a
possibilidade de uma alma que transmigrasse de corpo em corpo, tanto corpos
humanos como vegetais.
Bernard
Shaw disse God is in the making, “Deus está em processo”. Deus é algo que não pretence ao
passado, que talvez não pertença ao presente: é a Eternidade. Deus é algo que
pode ser futuro: se somos magnânimos, inclusive se somos inteligentes, se somos
lúcidos, estamos ajudando a construir Deus.
Borges oral & sete noites,
Companhia Das Letras, página 193
[...] a
imortalidade é necessária, não a pessoal, mas essa outra imortalidade. Por
exemplo, toda vez que alguém quer bem a um inimigo, aparece a imortalidade de
Cristo. Nesse momento, ele é Cristo. Toda vez que repetimos um verso de Dante
ou de Shakespeare somos, de alguma maneira, aquele instante em que Shakespeare
ou Dante criaram aquele verso. No fim, a imortalidade está na memória dos
outros e na obra que deixamos.
Dediquei estes últimos vinte anos à
poesia anglo-saxônica, sei muitos poemas anglo-saxônicos de cor. A única coisa
que não sei é o nome dos poetas. Mas que diferença faz¿ Que diferença faz se
eu, ao repetir poemas do século IX, estou sentindo uma coisa que alguém sentiu
naquele século? Aquela pessoa está vivendo em mim naquele momento, eu não sou
aquele morto. Cada um de nós, é de alguma maneira, todos os homens que já morreram.
Não só os do nosso sangue.
Claro, herdamos coisas de nosso
sangue. Eu sei – minha mãe me disse – que, toda vez que repito versos ingleses,
repito-os com a voz de meu pai. (Meu pai morreu em 1938, que foi quando Lugones
se matou.) Quando repito versos de Schiller, meu pai está vivendo em mim. As
outras pessoas que ouviram, essas viverão em minha voz, que é um reflexo da voz
de seus antepassados. Como faremos para saber¿ Ou seja, podemos acreditar na
imortalidade.
Cada um de nós colabora, de um modo ou
de outro, neste mundo. Cada um de nós deseja que este mundo seja melhor e, se o
mundo realmente melhora, eterna esperança; se a pátria se salva (por que a
pátria não haveria de salvar – se?), seremos imortais nessa salvação, indiferentemente
de nossos nomes serem ou não conhecidos. Isso é mínimo. O importante é a
imortalidade. Essa imortalidade é obtida nas obras, na memória que deixamos nos
outros. Essa memória pode ser ínfima, pode ser uma frase qualquer. Por exemplo:
“Fulano de tal, melhor perdê-lo que encontrá-lo”. Não sei quem inventou esta
frase, mas toda vez que a repito sou aquele homem. Que diferença faz que esse
modesto compadrito tenha morrido, se
ele vive em mim e em cada um que venha a repetir essa frase?
Borges oral & sete noites,
Companhia Das Letras, página 33, 34
O mesmo se pode dizer da música e da
linguagem. A linguagem é uma criação, vem a ser uma espécie de imortalidade.
Estou usando a língua castelhana. Quantos mortos castelhanos estão vivendo em
mim¿ Não interessa minha opinião nem meu julgamento; não interessam os nomes do
passado se estamos continuamente contribuindo para o futuro do mundo, para a
imortalidade, para a nossa imortalidade. Essa imortalidade não tem porque ser
pessoal, pode prescindir de nossa memória. Para que supor que vamos continuar
em outra vida com nossa memória, como se eu continuasse pensando toda a vida em
minha infância, em Palermo, em Adrogué ou em Montevidéu? Para que ficar o tempo
todo voltando a isso¿ É um recurso literário; posso esquecer isso tudo e
continuarei sendo, e tudo aquilo viverá em mim, mesmo que eu não fale nada a
respeito. Talvez o mais importante seja o que não recordamos de maneira
precisa, talvez o mais importante seja o que recordamos de forma inconsciente.
Para concluir, direi que acredito na imortalidade: não na imortalidade
pessoal, mas na cósmica. Continuaremos sendo imortais; para além de nossa morte
física fica nossa memória, e para além de nossa memória ficam nossos atos,
nossos feitos, nossas atitudes, toda essa maravilhosa parte da historia
universal, mesmo que não o saibamos e é melhor que não saibamos.
Borges oral & sete noites,
Companhia Das Letras, página 34, 35
O que é a eternidade? A eternidade
não é a soma de todos os nossos ontens. A eternidade é todos os nossos ontens,
todos os ontens de todos os seres inconscientes.
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