sábado, 1 de setembro de 2012

Podemos ser bons budistas e negar que Buda tenha existido, pois o importante é acreditar na Doutrina (Por Borges - literatura argentina)



Meu amigo budista e eu (não tenho certeza de ser cristão e tenho certeza de não ser budista) discutíamos, e eu lhe dizia: “Por que não acreditar no príncipe Sidarta, que nasceu em Kapilovastu quinhentos anos antes da Era Cristã?” Ele respondeu: “Porque isso não tem a menor importância: o importante é acreditar na Doutrina”. Acrescentou, acho que com mais engenho que verdade, que acreditar na existência histórica de Buda ou interessar-se por ela equivaleria a confundir o estudo da matemática com a biografia de Pitágoras ou Newton. Um dos temas de meditação dos monges nos mosteiros da China é duvidar da existência de Buda. É uma das dúvidas que eles têm de se impor para chegar à verdade. As outras religiões exigem muito de nossa credulidade. Se somos cristãos, devemos acreditar que uma das três pessoas da Divindade condescendeu em ser homem e foi crucificado na Judéia. Se somos mulçumanos, temos de acreditar que não há outro deus além de Deus, e que Maomé é seu apóstolo. Podemos ser bons budistas e negar que Buda tenha existido. Ou, melhor dizendo, podemos pensar, devemos pensar que não é importante nossa crença no histórico: o importante é acreditar na Doutrina. Mesmo assim, a lenda de Buda é tão bela que não podemos deixar de narrar.

Jorge Luis Borges. Borges oral & sete noites. Tradução: Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008,  páginas 142 e 143.

HISTÓRIA DA ETERNIDADE. Por Jorge Luis Borges (literatura argentina)



“Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso não passa de uma consonância que não demove ninguém da convicção de que a eternidade é uma imagem feita com a substância de tempo. Essa imagem, essa palavra tosca enriquecida pelos desentendimentos humanos, é o que proponho historiar.
Página 11.
“Entre o último instante da consciência e o primeiro clarão de uma vida nova há tempo nenhum – o lapso dura o tempo de um raio, embora para medi-lo bilhões de anos não bastem. Se não há um eu, a infinitude pode equivaler à sucessão”.
Nietzsche citado (apud) por Borges. (página 70)

BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. Tradução: Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia Das Letras, 2005.

SINOPSE:
A singular “História da eternidade”, que dá título ao volume, publicada originalmente em 1936, um ano depois da “História universal da infâmia”, como esta desafia o leitor desde o título. Uma antinomia opõe a noção de história, feita de sucessão temporal, movimento e mudança, à ideia estática de uma duração sem fim que o termo “eternidade” evoca. O desejo de escrever uma espécie de “biografia da eternidade” que nos libertaria da opressão do tempo sucessivo sempre atraiu Borges, que jamais abandonou o interesse pelos temas deste livro, mesmo quando, mais tarde, reprova o que então havia escrito sobre eles.  Na verdade, a coletânea marca uma virada na carreira do escritor, que se abre ostensivamente para a universalidade estampada desde o título. São agora motivos da inquirição intelectual do ensaísta as doutrinas do tempo cíclico, as Mil e uma noites e seus tradutores, a metáfora e as velhas imagens da poesia da Islândia. Numa das notas finais, discreta e tímida em meio a preocupações retóricas, desponta uma narrativa disfarçada de resenha crítica: “A aproximação a Almotásim”, em que se dá a ver um de seus primeiros exercícios de prosa de ficção. O ensaio que almeja espraiar-se até o infinito de repente desemboca no conto de uma aproximação sem termo, história de uma busca infindável.